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28/02/2015: “Conversão à gratuidade”

Comentário ao III Domingo da Quaresma: Lc 13, 1-9

Pregaçao de S. Joao Baptista

Aparentemente, uma equação muito correta e uma lógica muito honesta: “Deus, que é justo e ama a justiça, só pode detestar a maldade e banir os injustos da face da terra. Aos bons e aos que têm reto coração, Deus recompensa com alegria, prosperidade e vida longa; aos maus e pecadores, Deus pune, prova, permite todo tipo de desengano, na esperança de que abram os olhos e o adorem como Senhor. A pureza de Deus e o pecado humano são inimigos que se enfrentam desde a origem do mundo e, se o mal continua a existir, é porque Deus se vale dele para salvar os pecadores e os maldosos. E, se as pessoas sofrem, é porque cavaram com as próprias mãos as raízes de seu sofrimento. Ou seja, em alguma medida, os sofredores são responsáveis por sua dor, culpados por ela – eles mesmos ou seus pais, pois ‘Deus castiga os pecados dos pais nos filhos’. Só pode ser assim, pois são numerosas as passagens da Escritura que o testificam…”.

Tétrico esse cenário… Mas é incrível como esse engano – talvez, a maior e a mais danosa de todas as mentiras já inventadas pela fantasia religiosa – continua a conquistar adeptos, mesmo em nossos dias. Na infância do judaísmo, acreditava-se que Deus era invencível e que, por isso, seu povo também o seria. As derrotas históricas do antigo Israel obrigaram a rever essa convicção, trazendo à luz a esperança de que Deus continua a guiar seu povo, mesmo na opressão. Como? Valendo-se dela para purificar o povo de seus pecados. Contra esse modo de compreender, levantou-se a denúncia do Eclesiastes, do Livro de Jó, de Ezequiel e tantos outros: não existe compensação pela fidelidade ou pelo pecado; o bem e o mal existem no mundo como possibilidades, à escolha da liberdade humana; Deus não se ocupa pessoalmente de beneficiar ou castigar, enriquecendo ou empobrecendo ninguém.

A fé cristã, nesse aspecto, já nasceu mais adulta, para depois se infantilizar. As Escrituras Cristãs, primeiros testemunhos escritos das comunidades, já falam de um Deus que ama para além dos merecimentos humanos, que se dirige a nós por pura graça. E, se ele nos salva, não é porque nós somos suficientemente bons, mas porque ele é desmedidamente bom. Ninguém adquire para si ou para alguém a salvação ou o perdão (ninguém “forja” o Reino de Deus), mas apenas se os acolhe, conformando a própria vida à salvação oferecida (se “entra no Reino de Deus”). Deus é amor, é graça, é misericórdia sem conta – assim creem os cristãos. Somente em tempos de decadência da fé, com uma boa dose de esquecimento do evangelho de Jesus, se pode retroceder à lógica dos merecimentos e das satisfações dos sacrifícios pelos pecados…

Esse escândalo reaparece no evangelho de hoje. Diante das tragédias, que causam tantas comoções, os discípulos vêm a Jesus, na esperança de uma explicação. Esperam, talvez, a reafirmação daquilo que já acreditam: Deus pesou a mão sobre os desgraçados e sofredores. Ingenuidade de ontem e de hoje, pois um rápido olhar em volta revela as armadilhas dessa lógica. Pois todos nós conhecemos histórias de pessoas boníssimas que experimentaram na carne sofrimentos atrozes; assim como relatos de gente não tão boa, que obteve sucesso em suas tramoias e viveram felizes e impunes. Jesus responde com limpidez: os desastres da vida não têm relação com pretensos juízos de Deus sobre os pecados humanos. De modo que padecer um sofrimento, sofrer uma desilusão, enfrentar uma doença, chorar a morte de pessoas amadas… como também livrar-se de um acidente, escapar de uma cilada, vencer uma dificuldade… – nada disso se refere a juízos de Deus. Para as incertezas da vida, deveríamos buscar outras explicações, que não essa. Ou mesmo, em muitos casos, admitir humildemente que não é possível explicar; que algumas dores são irremediavelmente sem explicação e que não há palavra (nem humana, nem divina) capaz de tapar as contradições da existência. Existem acasos, existem fatalidades e existem responsabilidades a serem assumidas, e cabe a nós o discernimento de cada uma dessas coisas. O que não existe é um Deus jogando dados com a existência humana, como num show de marionetes, por puro gozo de seu poder. Isso, para a fé cristã, é inadmissível.

“… mas se não vos converterdes, igualmente morrereis” – sentencia Jesus. Uma ameaça? Não mesmo. Mas uma severa advertência de que, mais grave do que a morte inesperada, é a morte gestada dia a dia pelo descuido da própria vida. Mais terrível do que a morte natural, fim de tudo o que vive, é a morte radical do sentido, que condena a uma vida acinzentada e sem rumo. Nos dizeres do velho Prudente Nery, mais perigosa do que a sepultura, “fim dramático” e certo, é aquela morte que nos deixa insepultos, vagando pela vida sem viver, arrastando a si mesmo como um cadáver, “drama sem fim”.

Converter-se: como o povo infiel no deserto, que ainda recebe a terra como oportunidade de recomeçar; como a figueira há três anos estéril, que agora recebe novamente a chance de frutificar… que seja esse o convite desta quaresma. Não há infidelidade que não possa ser redimida, nem esterilidade que não possa ser fecundada. Pois, antes mesmo que o peçamos, a bondade de Deus já socorreu nossa sovinice com sua inesgotável generosidade em amar.

Que a quaresma nos seja oportunidade de conversão. E, quem sabe, de nos reconciliar até com as dores da vida e com as incertezas da existência. Pois, em todas elas, por mais que proteste nosso coração, permanecemos nas mãos Deus.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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