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02/08/2015: "Saciedade sem fastio"

Comentário ao Evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum: Jo 6, 24-35

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“Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35). Com esse versículo solene, a liturgia encerra a reflexão que iniciou na semana passada, com o relato da fração dos cinco pães e dos dois peixes (Jo 6,1-15) e continuada hoje, com a autoafirmação de Jesus: “eu sou o pão da vida” (Jo 6,35). Uma belíssima narrativa, construída com uma linguagem carregada de antigos significados. O alimento está entre as necessidades mais básicas da sobrevivência. Alimentar-se não é uma simples opção, mas uma condição indispensável à vida orgânica. Mais que isso, é um direito de todo ser vivo, que partilha da prodigalidade generosa do Criador e que, por isso mesmo, se constitui em dignidade e tem direito à manutenção da própria vida. O pão, entretanto, não apenas um alimento, colhido da natureza e consumido passivamente. Pelo contrário, é o resultado de uma longa jornada histórica do espírito humano, do desejo e da capacidade de modificar o mundo criado, da técnica de plantar, cultivar e colher; secar, torrar e moer, amassar, misturar e cozer; partilhar, dividir e oferecer. O pão pode bem ser o símbolo do encontro entre a fartura da natureza e a genialidade da cultura humana. A liturgia sabe disso e por isso reza: “Bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão que recebemos da vossa bondade: fruto da terra e do labor humano, que agora vos apresentamos e que para nós se vai tornar o pão da vida”.

Talvez seja por isso que o pão tenha sido escolhido pelo povo de Israel como símbolo da Torah, da Escritura, do testemunho escrito da Aliança de Deus. Porque, no fundo, é isto mesmo a Escritura: o resultado do encontro maravilhoso entre os vestígios de Deus “escritos” por toda parte e a procura humana pelo rosto de seu Criador; o abraço entre a palavra divina e os balbucios humanos; as sementes da graça frutificadas no chão de nossa história – “fruto da terra e do nosso trabalho”. E, desde muito cedo, o povo da Aliança descobriu que poderia se alimentar das palavras divinas, encontrar nelas a força e o sustento de suas lidas. Pois foi assim mesmo que Deus socorreu seu povo, na escravidão e depois no deserto: com uma palavra de liberdade, cheia de alento e plena de esperança. Como um pão “descido do céu”, capaz de oferecer o sustento necessário apenas a cada dia, sem sobra e sem acumulação, tendo de ser buscado e recolhido sempre de novo, assim o povo entendeu a Palavra de Deus (cf. 1ª leitura).

O evangelista sabia disso, pois diz que Jesus dividiu “cinco pães e dois peixes”. Cinco, pois cinco são os livros de Moisés, a Torah (nosso Pentateuco); dois, pois a Torah ainda traz os Profetas e os Escritos (salmos, orações, provérbios e tantos outros). Cinco pães e dois peixes: a Escritura completa, a imagem perfeita da palavra que Jesus distribui com largueza, capaz de alimentar muitos milhares e que nos alimenta ainda hoje.

Mas o evangelho vai ainda mais longe, ao dizer que Jesus mesmo é o pão da vida. Não uma palavra dita, não uma promessa comunicada, mas ele mesmo: em seu corpo, em seu ser, em sua vida, em sua presença ressuscitada séculos afora – também para nós. Ele permanece o pão capaz de nos sustentar, não apenas porque nos disse belíssimas palavras, para porque viveu de modo belíssimo nossa vida. E o evangelista garante: quem se aproxima dele não terá mais fome e quem crê nele não terá mais sede.

Será isto possível: não ter mais fome e nem sede? Ou seja, viver uma saciedade perfeita, sem mais faltas, sem carências, sem necessidades urgentes? Haverá um modo de existirmos sobre esta terra sem carregar essa sensação de solidão e de peregrinação que parece constituir nossa condição humana? Será essa a saciedade de que fala o evangelho? Dificilmente… Pois bem sabemos que, mesmo nos momentos de maior alegria e realização, nunca nos abandona a consciência de nossa finitude, de nossa pequenez, de nossa provisoriedade. Por maiores que nos achemos, seremos sempre os grãozinhos de terra, sobre os quais um dia se equilibrou o sopro de Deus. Mais ainda, nossa condição de humanidade exige um permanente inacabamento, uma busca sem fim, um constante peregrinar pela perigosa travessia da existência.

Mas, talvez, esteja exatamente aí o segredo deste evangelho. Jesus é o pão da vida. Uma saciedade que nos imobilizasse, que fizesse cessar nossas buscas e sossegar nossos sonhos jamais seria um alimento para a vida. Pois é próprio da vida pulsar. Hoje sabemos que nem as pedras são imóveis e sempre iguais, mas até elas em sua bruta dureza se modificam quando se deixam tocar pela suavidade do vento e a leveza da água. Nada que é vivo é fixo, imóvel, acabado. Uma saciedade que nos abre sempre mais; um alimento que nos sustém nas errâncias do existir; uma força que nos conduz nos caminhos sempre tortuosos dos desejos e das buscas; uma completude sem fastio – é isso que nos promete o evangelho. E não é está a preciosa lição do pão: de que a semente se torna espiga e a espiga grão; o grão se faz farinha e a farinha massa; surrada, mexida e assada se torna alimento, sorriso e partilha?

Que o Cristo, Pão da Vida, nos alimente de vida e de força. E que, alimentados por tão sublime alimento, descubramos o segredo de fazermo-nos também nós alimento e sustento para as fomes sem fim de nossa humanidade.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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