Comentário ao Evangelho da 27ª Semana do Tempo Comum: Mt 21,33-43
Todos sabemos o sentido etimológico de religião; a palavra provém do verbo latino relego (-ere) que significa ‘reunir de novo’, ‘reler’, ‘voltar a passar sobre algo’. Pois, na origem de todas as religiões é isso o que encontramos, a saber: não um corpo doutrinal já constituído, nem um conceito elaborado e bem definido de Divindade, mas vivências humanas originárias, que nos abrem e nos (re)ligam ao Mistério que nos envolve, que pulsa em nós. Descobrimo-nos, mais cedo do que costumamos imaginar, como filhos da Terra e do Céu, como filhos do Céu na Terra. Não nos definimos apenas pela habilidade (homo faber), ou pela arte (homo aestheticus), ou pela razão (homo sapiens), mas por nossa relação com o transcendente que na imanência de todas as coisas, transparece (homo religiosus).
Mas não permanecemos mudos diante do Tremendo e Fascinante, ao contrário, persistimos com temor e tremor em face do Mistério escondido. Percorremos longos caminhos de organização e estruturação; passamos do númen (experiência luminosa e originária) ao nomen (nome, falar da fé, tentar dizer o indizível). Um passo importantíssimo, por que aprendemos a ler, na história, a Revelação do Mistério. Ousamos até chamar-lhe de Deus e mais tarde, fomos mais longe, chamando-o de Pai. Do crer quisemos passar a entender, daí, surgiram uma infinidade de teologias. Nosso modo de adorar ao Mistério In-finito foi se complexificando em cultos, ritos, ligados aos próprios textos fundamentais que foram se constituindo e sendo canonizados. Nesse processo genético em que homens, com palavras humanas, de um jeito humano, iam fazendo religião, Deus mesmo não se ausentava, assim cremos. Ele relacionava-se conosco e nessa Relação, enfim, percebíamos os traços de sua Revelação.
Entretanto, como todo dom nas mãos humanas, se não for bem cuidado, como uma vinha que necessita de rega e poda, de zelo e amor, as religiões também podem se perverter. De libertadoras, podem tornar-se castradoras e legalistas; os exageros, a pompa e o triunfalismo podem corromper o rito; a leitura fundamentalista pode rasgar as páginas do texto sagrado; e sobre os homens podem ser postos pesados fardos (Mt 23, 4). O homem religioso pode entender a religião como instrumento de poder e dominação e depor Deus, tomar seu lugar; ao invés de servo da vinha pode querer se converter em proprietário. Pior ainda: pode matar em nome de Deus, não se preocupando em vê-Lo no rosto do próprio irmão.
Quando o ser humano quer usurpar Deus de seu lugar, rompe a cerca (sinal da relação, da aliança). Já na primeira plantação de Deus, “cercada” por seu amor, lá nas origens, o ser humano quis ser Deus, rompendo a relação com Ele. Israel, que fez uma profunda experiência do Mistério, nomeando-o de Deus libertador e criador, rompeu várias vezes a aliança, produzindo azedume e acidez, enquanto Deus não se cansava de esperar por “frutos bons”: o direito e a justiça. A vinha se perdeu, porque os proprietários se esqueceram do Dono, tanto que não foram capazes de se abrir à sua constante Visitação; nos profetas e, nos últimos tempos, em Jesus. Por isso, os exegetas entendem que esse texto que ora meditamos, reflete a Crise de Israel. Só de Israel? É o que deveríamos nos perguntar. Não seria uma crise do homo religiosus, inclusive o que pertence ao cristianismo?
Não teremos perdido Deus, enquanto horizonte, já que o mantemos sobre as nossas garras afiadas, sem deixá-lo ser o que É: o dono da vinha? Não teremos nos esquecido, nós, os vinhateiros, que somos servos, trabalhadores da vinha do Senhor, amigos seus e que, portanto, deveríamos nos ocupar apenas de que a vida se pareça um pouco mais com o vinho da alegria que Deus quis? Vinho saboroso, inebriante, sinal da aliança definitiva, do casamento entre Ele e nós (Jo 2)? Ao invés disso, não vemos o Dono da Vinha como uma ameaça, não temos feito Dele mesmo, uma propriedade? Não teremos posto à frente do Mistério que Deus ainda é, nossas palavras, conceitos dogmáticos, teologias, esquecendo-nos Dele, finalmente? A vinha não poderá ser arrancada também de nossas mãos? Será esse movimento cultural e religioso de abandono da religião institucionalizada, um sinal em face de nossas “uvas selvagens”?
A parábola dos vinhateiros homicidas nos mostra que somente Deus tem a última palavra quando se trata de conduzir seu Povo. O povo também o reconhece quando clama, entre palavras ou silenciosamente, que Deus proteja e cuide do “rebento que firmou”, com sua mão direita (Sl 80). É Ele quem nos conduz, fazendo de nossos desacertos, caminhos para que sua vinha seja vicejante e frutífera, assim como fez da Pedra que os construtores rejeitaram, Pedra angular (Mt 21, 42). Quanto a nós, sabemos bem, resta em nosso coração um desejo contínuo de estabelecer relação com esse Mistério que nos ultrapassa. De estarmos ligados a Ele. É Deus mesmo quem plantou “essa vinha em nós”, cercou-a, limpou-a, cultivou videiras escolhidas, olhando-a com cuidado (Is 5, 1s), esperando dela frutos bons, para nós mesmos e para os outros. Quando o tempo da colheita chegar, que frutos entregaremos?
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Por, Pe. Eduardo César
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