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10/07/2016: “Divina humanidade”

Comentário ao XV Domingo do Tempo Comum: Lc 10, 25-37

Não fosse uma leitura já muito anestesiada pelo tempo, amaciada pelo costume ou amortecida pela apatia, algumas páginas do evangelho nos deixariam perplexos, ruborizados ou mesmo irados. Pois é impressionante a humana vivacidade que salta dessas páginas, confrontando nossa vida, às vezes tão acostumada àquelas pequenas e grandes desumanidades de todos os dias. E não foi exatamente isto que escandalizou os contemporâneos de Jesus? Um olhar capaz de ver aquilo que todo mundo se esforçava por esconder? Um gesto que devolvia voz àqueles que foram silenciados por sagrada interdição? Um amor e uma generosidade tamanhos, a ponto de não se deixarem aprisionar ou limitar pelo convencionado e estabelecido? Uma inviolável liberdade: isso sim, escandalizava em Jesus de Nazaré. E permanece a desconcertar aqueles que depositam o sentido de sua vida na ordem e na lei – e não em Deus. Ou aqueles que já se assenhoraram da vida e do coração dos irmãos – esquecendo-se que somente Deus é Senhor da Vida.

Aqueles, porém, que acolheram essa palavra comprometedora, reconheceram nela uma familiaridade esquecida. Pois a Boa Notícia que lhes chegava não era de modo algum estranha, um mandamento arbitrário, vindo de fora. Pelo contrário, era uma palavra esperada, desejada, que recordava um tesouro escondido dentro da gente. Nos dizeres do Deuteronômio, “uma palavra bem ao alcance, que está nos lábios e no coração para que a possamos observar” (cf. Dt 30,14). Recordação de uma humanidade esquecida, retorno à casa, acolhimento num abraço saudoso, redescoberta do tesouro que nos habita – que vem de Deus: é isso que o evangelho de Jesus escandalosamente causou nos seus ouvintes e é isso que ele pode fazer em nós.

Hoje, Lucas apresenta uma cena típica: um mestre da Lei, pretenso sabedor dos segredos de Deus, disposto a colocar Jesus em dificuldade com a religião de Israel. “Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna” – é sua pergunta. Jesus devolve-a à sabedoria do próprio interlocutor, já que ele é um doutor da Lei. Mas devolve acrescentando algo muito importante: “Que diz a Lei? Como lês?”. Não basta saber o que dizem as Escrituras, é preciso perguntar pelo modo como a lemos. Pois o texto, fechado no livro, objetivamente, é apenas texto. Mas a Palavra de Deus que habita o texto salta quando a lemos, com olhos atentos e coração sincero. O “como a lês” é tão importante quanto o “que diz a Lei”. A pergunta pela Lei evoca o texto; a pergunta pelo “como lês” se dirige ao coração, à busca do leitor. E tanto Jesus quanto Lucas sabiam que, frequentemente, o problema dos fariseus e dos doutores não era sobre “o que diz a Lei”, mas sobre o modo de lê-la. Pois a mesma palavra pode ser remédio ou veneno, carícia ou espada, descanso ou tormento, pode levar ao céu ou ao abismo… depende do “como a lês”.

O doutor responde corretamente, citando os mesmos mandamentos que o próprio Jesus, certa feita, citou como o fundamento “da Lei e dos Profetas” – pedra de toque de toda a Escritura (cf. Mt 22,40). Isso é o “que diz a Lei”. Falta ainda o “como a lês”. E a isso se dirige sua segunda pergunta a Jesus: “quem é o meu próximo?”. Ou seja, ele não quer saber o que diz o texto, mas o modo de compreendê-lo. Se a resposta de Jesus for restritiva, encaixando na categoria de “próximo” algumas pessoas e excluindo outras, o mandamento obrigará a amar a uns e desobrigará de amar a outros. Seria essa a resposta esperada pelo doutor da Lei? Seria esta a resposta esperada por nós – uma solene permissão para o descompromisso com os irmãos, ou uma audaciosa permissão para julgá-los, justificados pela Lei?

Jesus responde com uma parábola particularmente desconcertante. Nela, figura um homem caído na indigência do caminho, vítima de violência e abandono. Também um sacerdote e um levita – pessoas de bem – que passam por ele, veem-no e “seguem adiante pelo outro lado”. E um samaritano – estrangeiro de fé bastante suspeita – que passa, vê, se aproxima e faz aquilo que de mais natural se poderia esperar, socorrendo o desvalido. No seu gesto, nada de sobrenatural, nada de fantástico, nada de excepcional ou heroico. Nenhuma confissão de fé explícita, nenhuma prece, nenhum mandamento religioso, mas apenas o gesto mais imediato e urgente, disponível a todos os passantes. Mas por que esse gesto escandaliza? Acaso por se tratar de um estrangeiro? Ou por ser ele um samaritano, de crenças duvidosas? Ou por ele não seguir a Lei de Moisés? Ou, talvez, nos escandalizemos porque o mais natural de todos os amores e a mais humana de todas as compaixões já nos soam estranhos, a essa altura… Pode ser que, entretidos com as sofisticâncias da vida, ou ocupados demais conosco mesmos, ou crendo que a obediência à Lei religiosa nos dispensa de algo mais (como o profeta e o sacerdote), estejamos já esquecidos daquilo que, primariamente, nos identifica à humanidade e à fé. Para Jesus, não há dúvida: é exatamente aí, no mais simplesmente humano, nas experiências primárias do amor, da alteridade e da liberdade, que se instala e floresce a palavra do evangelho.

Como frequentemente ocorre nas parábolas, o ouvinte se envolve, a ponto de não perceber a virada que Jesus opera na pergunta final. Pois e questão que havia motivado a parábola (aquela que se referia ao “como lês”) era: “quem é o meu próximo?”. Mas Jesus devolve com: “quem se fez o próximo daquele que estava caído?”. O próximo não é um outro, ou alguns escolhidos dentre os outros, a quem meu amor deve ou não se dirigir. O próximo sou eu, quando me aproximo e amo, “fazendo misericórdia com ele”. A proximidade não é questão de descobrir no outro um próximo, mas de fazer-se próximo, de aproximar-se. E é por isso que independe da convicção religiosa do outro. Ele pode ser samaritano ou judeu, estrangeiro ou vizinho, indócil ou amável – não importa. Se me aproximo e me disponho a “derramar óleo e vinho em suas feridas”, já me fiz seu próximo. Assim, para Jesus, na misericórdia feita sem qualquer pergunta ou condição, na generosidade de cuidar do outro à custa do próprio tempo e do próprio sustento, no fazer-se próximo, se cumprem os dois mandamentos inseparáveis de amar a Deus com todo o coração, com toda a alma com toda a força; e de amar o próximo como a si mesmo.

“Vai e faze a mesma coisa” – ordena Jesus. A pergunta inicial era: “que devo fazer para herdar a vida eterna?”. A vida eterna é um fazer, não tanto um dizer. E é, em primeiro lugar, um agora, para só assim ser um depois. Que acreditemos nisso, reconhecendo nessa palavra uma deliciosa recordação daquilo que nos faz gente, de verdade. E que, de tão humano e de tão profundo, só pode ser Palavra daquele que nos habita os mais abissais segredos do coração: Deus.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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