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22/03/2014: "a fonte do dom"

III Semana da Quaresma. Evangelho: Jo 4, 5-42

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Certa vez, uma banda lançou uma música provocante que começava perguntando: ‘você tem fome de quê?’, ‘você tem sede de quê?’. A letra da música fazia sentir que em nós há um clamor por mais do que simplesmente comida e bebida… Mas, na busca que todo homem engendra para satisfazer suas próprias carências e desejos – suas sedes – encontra ele, afinal, essa água, da qual, se beber, não terá mais sede? Quem nos dará essa água que, enfim, nos saciará e nos fará descansar da labuta contínua de ‘procurar, achar, apaziguar-se, desejar e procurar mais uma vez?’.

A samaritana pode ser, nesses contornos, uma metáfora de nossa vida. Somos seres desejantes, sempre abertos, à procura da água que pode nos saciar não só “a conta-gotas”, ou “a baldes”, momentaneamente, mas definitivamente. E para o nosso vazio interior há certamente muitos engodos, mas tal vazio não admite ser preenchido por ninharias, por objetos de desejo que são logo consumidos. Não queremos ‘água engarrafada’, mas ‘água viva’.

Entretanto, nos enganamos com vários poços que julgamos apropriados. Quando, por exemplo, procuramos preencher nossas carências com a compra de algum bem, o desejo continua vivo após o consumo e sempre pedindo mais… Aqui, trata-se de mostrar que para um anseio infinito, coisas finitas e precárias jamais bastarão. Então, se nenhuma realidade material nos apazigua, quem sabe o amor devotado a alguém? No entanto, também nesse caso, encontramos muitas experiências em que as pessoas não conhecem a unidade, a paz, o amparo, junto ao (à) parceiro (a). Iguais à samaritana que teve cinco maridos (= ídolos), mesmo capazes de amar uma, cinco ou mais vezes, sempre parece advir sobre nós alguma forma de decepção ou sofrimento por conta de uma ausência indefinida e de um desamparo inextinguível, mesmo frente aos que amamos. Será, pois, e por fim, o poço das crenças que trará a tão sonhada realização? Também não, porque nenhuma de nossas representações é o Absoluto e nossas ideias sobre Deus correspondem muitas vezes a ídolos terríveis, em nomes dos quais podemos fazer coisas igualmente terríveis. Mesmo se dissermos que o poço que nos satisfaz é Deus, teremos que mais cedo ou mais tarde reconhecer que nos decepcionamos com Ele, que não se encaixa no lugar de ‘objeto de desejo’, justamente porque não pode ser objetado. Deus segue sendo o fundamento sem fundamento; o Imanipulável e enquanto Ele for apenas uma forma de confessar os inconfessáveis segredos de nosso coração, ele não será o Deus que justamente nos conduz a enfrentá-los.

Diante dessa mulher, diante de todos nós, aparece Jesus. E o percurso que ele ensina a mulher a fazer é o de não procurar água fora, mas o de escavar dentro. Trata-se de encontrar o próprio poço, a fonte interna, ao invés de caçar fora, procurando realizar-se em um bem (o poço de Jacó), em um relacionamento amoroso (cinco maridos), na prática de uma religião (‘É em Jerusalém que se deve adorar’). Jesus convida a samaritana a mergulhar na fonte de Vida que há nela mesma, onde em Espírito e Verdade ela pode encontrar a Deus, sem fazer dele um objeto de desejo, mas descobrindo-o como o Sujeito de Desejo, que a faz descobrir-se pessoa.

Jesus faz a mulher compreender que a fonte e a sede são uma e a mesma coisa (não fosse assim, aquele que promete ‘água viva’, pediria de beber? Não fosse assim, Ele mesmo não diria: se conhecesses o Dom de Deus, e quem lhe pede, tu mesmo me pedirias.). Nossos desejos são também a nossa fonte, porque dessa abertura, dessa vacuidade interior da qual achamos que podemos apenas pedir, em penúria, podemos descobrir que é possível doarmo-nos. Alguém saciado, tendo descoberto uma fonte da qual pode beber sem pedir, lembrar-se-ia dos outros? É preciso, pois, entender que essa fonte que pode emanar de nós, a fonte de água viva é a fonte dos próprios desejos, alargados, aberta aos outros. Afinal, que outra coisa é amar radicalmente, senão ‘dar do que não temos?’ Ou, do que temos abundantemente: dos nossos sonhos, das nossas fantasias, dos nossos anseios, do melhor de nós, do que ainda não existe em nós, mas que ao fundo, é apenas uma fonte oculta de vida… Lembremo-nos que a samaritana, depois de encontra-se com Jesus, vai aos seus sem a bilha de água, mas para despertar neles o desejo de encontrar o Messias…

Assim sendo, dar e receber, fonte e sede, não são duas facetas de uma mesma moeda, apenas, mas realidades que se interpenetram. Jesus acompanhou a carência da mulher e a ampliou, ampliando o seu desejo, ao invés de saciá-lo (‘se beberes dessa água não terás mais sede’). Assim, com o desejo aberto, não haverá nenhum objeto que o preencherá e ela então estará livre de toda a idolatria, que consiste em esperar a realização suprema, pedindo o Absoluto de um relativo. Ela poderá amar as pessoas como são, não lhes pedindo para satisfazer definitivamente as suas carências. Saberá também acolher os próprios defeitos e os dos outros, porque não quererá ver em ninguém suas projeções de perfeição. Não exigirá de nada e de ninguém a inviolável calmaria do coração pela qual ansiava, pois o “Dom de Deus”, a Fonte, está dentro em si.

Assim, conosco. Jesus não quer, pois, eliminar o desejo, ou saciá-lo, mas, quer libertar-nos do apego aos objetos de desejo, que nos impedem de gostar das coisas e de querê-las, sem fazer delas os poços de nossa realização. A Fonte do Dom está em nós; essa sede que nos sacia e que faz-nos conscientes de que devemos exigir o Infinito, apenas do Infinito.

***Gostaria de remeter o leitor ao livro: “O Essencial do Amor: As diferentes faces da experiência amorosa” de Catherine Bensaid e Jean-Yves Leloup. O livro foi editado pela Vozes. Nele, encontrei valiosas intuições que agora, aparecem nessa reflexão.

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Por, Diácono Eduardo César

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