Comentário ao Evangelho do V Domingo da Quaresma: João 12,20-33
O mais importante e essencial de nossa história não está à luz do meio dia, mas como que no primeiro clarão da manhã, quando já não é mais noite, mas ainda não amanheceu totalmente. Por isso, não podemos narrar o indispensável como se estivéssemos falando de simples fatos brutos. E, não é verdade que narramos à nossa maneira, nossa vida e a dos outros e que uma mesma história pode ser contada de mil formas, tantas quantos forem os contadores? Talvez, também por isso, nossa língua tenha inventado as figuras de linguagem; porque a vida humana precisa se expressar, para longe de todo objetivismo. Para isso ela criou, dentre outras figuras, os paradoxos, que contrariam as opiniões comuns e, que embora pareçam expressar ideias sem nexo, abrem o sentido ou uma compreensão (por exemplo: “o melhor improviso é aquele que foi bem preparado”).
O evangelho de hoje joga com dois paradoxos impressionantes. O primeiro: “quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem não faz conta de sua vida neste mundo, há de guarda-la para a vida eterna”. Como não fazer conta da vida se ela é dom de Deus, como não amá-la e cuidar dela, vivendo intensa e autenticamente se a nossa responsabilidade é justamente essa? O segundo é: “quando eu for enaltecido, atrairei todos a mim”. O enaltecimento em João, não é a glorificação a partir das honrarias, mas a cruz. Como é possível que um crucificado, um assassinado atraia todos a si, se é justamente o contrário que acontece já que fugimos dos cadáveres que a nossa história produz? E, no entanto, esses dois paradoxos, guardam as verdades mais brilhantes de nossa fé, embora sejam obscuros. Obscuridades brilhantes; isso é o que temos aqui.
Chegou a hora de Jesus e ela corresponde ao momento em que semente é deitada na terra, expressando um dos maiores paradoxos de nossa fé: na morte de Jesus está a vida de todos, do mesmo modo que da morte da semente, nasce a planta e ela dá frutos. Tal junção obriga-nos a dizer: a glória de Cristo, sua exaltação é sua crucifixão. Por isso, Jesus pode falar de não se apegar à própria vida. Não é que ela não tenha sentido, ou seja dispensável, ou tenha de ser vivida sem nenhum amor, a fim de ganhar a vida eterna, mas é precisamente porque toda vida humana – e não só a nossa – deve transbordar em plenitude, que não podemos cuidar só da nossa vida, apegados a ela. Dito de outro modo: só encontramos, afinal, o sentido da própria vida, abrindo mão dela (de novo o paradoxo!), em favor dos irmãos, na doação. Isso é diferente dos projetos que vemos em abundância, hoje em dia, de salvação da própria alma e sob todos os esforços, numa neurose culpabilista para evitar o pecado, como se fosse preciso ‘safar-se sozinho’, esquecendo-se que o caminho é justamente o de oferecer-se amorosamente (amor que excede os limites da vida), em favor dos irmãos.
O Pai glorificou Jesus em todas as suas palavras e obras e ainda o glorificará na cruz. Mas que poder de atração tem a cruz se a abominamos? Falta-nos, talvez, entender a cruz não como um massacre, ou como o sadismo de um Deus-Pai que sacrifica o Filho; mas como drama de Deus mesmo, que amou tanto o mundo, que deu seu Filho Único (Jo 3, 16). E o Filho, amou tanto o Pai e aos homens, que não se negou à morte, embora tenha pedido que fosse afastado seu cálice (Hb 5, 7). A glória de Deus é seu amor excessivo e escandaloso capaz de dar a vida, capaz de morrer como a semente, a fim de que nossa vida florisse e frutificasse.
Teria fracassado? Ou, para que essa vida seja parecida com o jardim que Deus quis, não será preciso que nós também saibamos doar a vida em favor do próximo? Não seria essa, a aliança do amor (amor que desejamos tanto), a que foi inscrita, agora, não mais em pedras, mas em nossos corações de carne? (Jr 31, 33)
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Por, Pe. Eduardo César
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