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24/05/2015: "Espírito de Unidade"

Comentário ao Evangelho do Domingo de Pentecostes: Jo 20,19-23

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O Ocidente parece ter um problema com a palavra “espírito”. E, ao contrário do que podem esbravejar os profetas da desgraça da pós-modernidade, guardiães implacáveis de um pretenso passado dourado, essa nossa dificuldade com o “espírito” não é nada nova. Mesmo quando as árias da Cristandade compunham a sinfonia da história ocidental, o “espírito” permanecia distante e desconhecido, envolto não em mistério, mas num enigma indecifrável. O resultado foi, por um lado, um quase total esquecimento do Espírito Santo na organização da Igreja e na liturgia e, por outro, uma espetacularização dos dons tidos sobrenaturais (ou contra-naturais, ou mesmo anti-naturais) da espiritualidade. O mundo grego já nos havia ensinado a dividir o mundo em dois: material e espiritual, corporal e etéreo, terras e céus, numa oposição irreconciliável em que a opção por um polo excluiria necessariamente o outro. A moral medieval aprofundou ainda mais essa dilaceração, exaltando as “virtudes espirituais” contra as “concupiscências carnais”, propondo-se a salvar as almas, mesmo a custo do perecimento dos corpos. Tanta demonização do corpo, da matéria e da carne só poderia gerar crentes que, desprezando o mundo, terminariam também por descompreender o sentido do Espírito. Assim descompreendidos, reduziríamos a festa de hoje, a efusão do Espírito Santo, a uma apoteose quase mágica, marcada por manifestações extraordinárias de dons do céu e milagres estupendos, em que a monótona e sofrida rotina da vida normal teria sido interrompida, ainda que por um instante, pela onipotência de Deus e suas gloriosas manifestações…

Triste que seja assim… pois a experiência de Deus que os antigos chamaram “Espírito” nada tem de anti-material ou de adversa ao mundo e ao corpo. Pelo contrário, a Tradição deu a essa experiência o nome de “sopro”, “hálito”, “respiro” (ruah, pneuma, spiritus) – a mais vital de todas as funções do corpo. Podemos até não nos atentarmos à respiração, passarmos horas e dias sem nos recordarmos de sua existência; mas bastam alguns segundos sem ela para que a busquemos com todas as forças. Sinal de vida por excelência, fonte do movimento e da energia dos corpos vivos; golpe de ar que torna possível toda palavra, refrigério que possibilita toda ação… assim é o respiro. E foi precisamente essa imagem que serviu de metáfora desta preciosa experiência de Deus: uma presença próxima, mais íntima a nós do que nosso próprio coração; fonte de todo entusiasmo, de todo vigor, de toda esperança, de toda persistência, de toda criatividade; caminho de transcendência para as dores fundas e remissão dos sofrimentos inevitáveis; condição de possibilidade de nossas palavras e inspiração incansável de nossas ações – assim mesmo é Deus, que nos habita e sustenta desde dentro como Espírito Santo. De modo que não é preciso negar a carne, nem o mundo, nem a natureza, nem a matéria para encontrá-lo. Basta fitar com atenção o mais profundo dessas mesas realidades para se surpreender: lá mesmo estará o Espírito. Viver a carne em toda sua fragilidade, nem negações inúteis de nossa provisoriedade e mortalidade; contemplar o mundo em sua beleza que carrega discreta a assinatura do artista Criador; mergulhar sem receios nos dramas da história pessoal e sentir correndo nas próprias veias os grandes dilemas da história da humanidade… Nada disso é distração que impede o encontro com o Espírito; pelo contrário, são os caminhos privilegiados de sua manifestação.

Talvez por isso, as narrativas pascais tenham escolhido esta festa para coroar o mistério pascal. Na diversidade dos esquemas narrativos e dos gêneros literários, seja “ao entardecer do primeiro dia da semana” (João), seja “cinquenta dias depois” (Lucas), ou “unidade de multiplicidades” (Paulo), o Espírito é o mesmo: a testemunha qualificada do Ressuscitado; presença de vida brotada na ausência da morte; fruto maduro da entrega de Jesus na cruz; não recordação estéril de um fantasma, mas guardião da historicidade e da carnalidade de um homem concreto, entregue a nós, serem humanos inteiros – o Espírito de Jesus Ressuscitado.

Que, ao celebrarmos a festa do Espírito, nos reconciliemos um pouco mais com a carnalidade do mundo e a materialidade da vida, certos de que “Cristo derrubou na própria carne o muro que nos dividia” (cf. ***) e reconciliou o mundo e o Pai (cf. ***). E creiamos que, tocada desde dentro pelo Espírito, nossa humanidade se transfigura em sacramento do mistério de Deus.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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