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"E, olhando para ele, disse-lhes: 'Fazei tudo o que ele vos disser'"

Na proximidade da festa da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, e com a incumbência de escrever um artigo sobre a mãe de Deus, pus-me silente na oração. Desejei escrever a partir do vivido, e não apenas da reflexão intelectual, ainda que necessária e bem-vinda.

A presença de Maria no coração do povo simples é inquestionável. Nos rincões deste nosso país, por onde formos, lá encontraremos “Marias” e “Josés”, homens e mulheres, “debulhando” por entre seus dedos, às vezes magros, seus incontáveis mistérios de vida, de dores e alegrias, sofrimentos e esperanças. Os humildes, como são vistos os mais simples, compreendem que a vida é também isso: oscilações de vida e de morte, como canta João Cabral de Melo Neto em sua famosa “morte e vida, Severina” ou, então, como eternizou Suassuna em seu “auto da compadecida”. A literatura, neste sentido, cumpriu seu ofício de relatar o real, o imaginário e o simbólico.

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Madonne – de Salvador Dalí

Aliás, simbologia não falta à devoção mariana. Em todos os países ha um relato do carinho e da presença da mãe de Deus que quis se identificar com a realidade daquele povo. E o povo, especialmente os mais simples, se reconhece naqueles traços tão característicos, no jeito peculiar e, ao mesmo tempo, tão familiar da presença materna da mãe de Jesus entre eles. É a mesma Maria de Nazaré, agora vista sob a ótica do palpável, da proximidade e da imersão na cultura autóctone.

Porém, para longe das representações de ontem e de hoje, importa-nos, sobretudo, o olhar acurado sobre aquela mulher que os Evangelhos nos apresentam e que, delicadamente, foi traçada em cada relato. Isso nos basta. Queres saber, de fato, quem é Maria e qual sua missão junto a Jesus? Olhai demoradamente para a Maria da Bíblia. Todos os demais outros títulos marianos dizem de uma mesma Senhora: Maria de Nazaré.

Lembrei-me da experiência feliz de um jovem em um retiro espiritual que fez. Ele me contou.

O retiro ocorreu em Itaici-SP, com um padre jesuíta – a mesma ordem do papa Francisco -. Há uma peculiaridade nesses retiros, também chamados de exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola: o confronto direto com a Palavra de Deus.

Por meio de um método de leitura, escuta e oração da Palavra de Deus, o retirante – quem faz o retiro – se vê envolto pelo texto sagrado. É o chamado estágio de contemplação. Depois de lido, o texto se torna palpável; ganha sabores, cor, luminosidade e nos convida a adentrá-lo paulatinamente.

Era o quarto dia do retiro. O pregador convidou-os a escolher um texto da vida pública de Jesus a fim de contempla-lo minuciosamente. Contemplar a cena do Evangelho quer dizer colocar-se nela, dentro dela, de modo a interagir com os personagens bíblicos, alterando inclusive o texto. Evidentemente que tudo isso ocorre no mais profundo clima de oração. Há uma responsabilidade frente ao texto. Reza-o, ouve-o e, principalmente, silencia-se.

Aquele jovem escolheu o texto das Bodas em Caná (Jo 2, 1-11). Foi uma escolha arbitrária. Disse-me que aquele texto sempre o comoveu. O drama e a trama do texto o instigam, pois, nele, especialmente, há cheiro de gente e de humanidade exposta, sem rodeios nem romantismo. Há uma tensão no dito que me impacta definitivamente.

Ele chegara a Caná depois que todos já estavam. Diante dele uma cortina se abriu e pode adentrar a cena evangélica. O cenário era a sala em que se encontravam os noivos, cercados pelos seus familiares e amigos que, com eles, se alegravam. Não havia o menor sinal de contradição ou insatisfação. Tudo transcorria dentro da normalidade. Uma festa judaica de casamento dura dias. Mas, mesmo assim, o cansaço não era visível; havia uma vitalidade revigorante no ar.

Como numa alternância de imagens, foi reportado aos bastidores da festa. Aliás, é ali que tudo acontece, dizem os teatrólogos. Ouviu quando certa criada confidenciou a uma outra que o estoque de vinhos parecia minguar rapidamente, mais do que o planejado. Seu semblante era tenso e sua voz transparecia imprecisão. Era uma constatação ou apenas um excesso de competência?  A outra criada deu de ombros. Não era de sua competência antecipar dissabores. Até mesmo por que ela sequer bebia do vinho que era fartamente oferecido aos convidados. Por isso, talvez, não lhe importava muito a possível vergonha pela qual passaria os seus patrões. Ela era tão somente uma escrava. O som, lá fora, anunciava que a festa não tinha hora para terminar. Porém, cá dentro, o vinho dava sinais de esgotamento. Quem iria se importar?

Foi nesse exato momento que ele se deu conta da figura até então imperceptível. Uma mulher – seria outra serva?- ouvira todo o rumor das colegas. Seu semblante não denotava apreensão, mas parecia fitar o chão como quem pensa em saídas possíveis para aquele embaraço. Lentamente o ângulo da cena se afastou e, num segundo, o jovem foi posto ao lado dela. Ela, por sua vez, virou-se para ele e, com voz firme, mas terna, disse-lhe: “eles não têm mais vinho”. Delicadamente alcançou dois empregados que passavam, chamou-os e, olhando para aquele jovem, disse-lhes: “fazei tudo o que ele vos disser”.

A experiência terminou aí. As conclusões foram várias. Porém, em atenção ao leitor, sugiro uma possível:

A missão salvadora de Jesus continua em nós. Ele, pela intercessão de sua mãe, antecipou sua manifestação pública, o início de seu ministério. Embora não fosse “a sua hora”, Ele transformou água em vinho – no melhor vinho possível -. Também nós, pelo batismo, devemos ser capazes de perceber as necessidades à nossa volta e, como cristãos, isto é, outro Cristo, compadecer-nos das necessidades e sofrimentos alheios.

Maria nos ajuda neste processo de identificação. É de sua natureza não reter nada nem ninguém para si nem tampouco colocar-se como o fim do processo salvador de Deus. Ela nos apresenta o Filho, indica-nos [Ele] a Ele ao mesmo tempo em que lhe fala de nossas necessidades mais prementes. Interceder pelos filhos é coisa de mãe. Quem nunca: “mãe, peça ao papai… fale… convença-o…”.

Maria, como esposa, mãe e filha dileta de Deus tem o dom inquestionável de “antecipar” a “hora” d’Ele em nossa história, em nossa vida e em nossa caminhada cristã. Ela teve fé na ação salvadora de Jesus. Ela acreditou, mais uma vez, e não esmoreceu. Não se angustiou e não se deixou paralisar pela situação aparentemente insolúvel. Ela não se colocou alheia àquela situação, mas mostrou-se solidária, atenta e fraterna com os seus anfitriões. Pediu a quem sabia que podia fazer alguma coisa. Foi a quem era de direito, a quem julgou capaz do “impossível”. Pediu e não replicou: acreditou.

Ir a Jesus por Maria é mais do que um gesto de fé e de devoção. É, antes, um gesto singelo e concreto de sabedoria, de inteligência e de entendimento. Aliás, todos esses dons nos são concedidos pelo seu Esposo Divino, o Espírito Santo. Ousaremos ir mais vezes a Ele por ela?

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Por, Pe. Claudemar Silva

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