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"Não apagar a chama que ainda fumega…"

“Como diferenciar o profeta verdadeiro de um falso profeta?”

Esta era uma das muitas interrogações que o povo da Antiga Aliança se fazia, diante de tantos homens e algumas mulheres que se diziam vindos da parte de Deus (YHWH). Afinal, um profeta (nabi) é um mensageiro de cuja boca o Senhor se dirige ao seu povo: “Oráculo do Senhor…”.

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No Antigo Israel eram vários os que se apresentavam como sendo profetas. No entanto, alguns critérios ajudavam no discernimento acerca de sua procedência: Os “falsos profetas” eram de espírito extáticos, cúlticos, profissionais, imorais e suas profecias[1] não se realizavam. Os “profetas verdadeiros”, no entanto, eram homens da palavra, não extáticos, anticúlticos, carismáticos, íntegros, e suas profecias se cumpriam.

Um outro critério, porém, tornava ainda mais preciso este discernimento: o verdadeiro profeta era alguém dotado de esperança e a anunciava constantemente. E, mesmo quando tinha que denunciar as incoerências do povo, e o desencadear das possíveis desgraças, ele não se deixava contaminar pelas situações difíceis e pelos prognósticos maus. Ao contrário. Ele se enchia de fé e acreditava que o melhor estaria por vir e que era sempre possível o bem, o melhor e a salvação de todos.

O profeta Isaias, chamado pelos estudiosos de “o profeta da Esperança e da Libertação”, atesta, acerca do profeta verdadeiro, que “ele não apaga a chama que ainda fumega; não quebra a cana rachada” (cf. Is 42, 3). O verdadeiro profeta insiste até o último instante por acreditar na transformação da realidade e na conversão dos corações. A vida do profeta torna-se, portanto, um anúncio: a de que, por meio dele, Deus busca o ser humano; dirige-lhe sua Palavra fazendo-o conhecer a Sua vontade.

“Poderia ter escolhido algum meio mais eficaz: invasão avassaladora no íntimo do homem, absorção ou rapto de todo o homem…” (Alonso Schokel[2]), mas, Ele preferiu dirigir-se ao homem através dos profetas: “eu ponho as minhas palavras na tua boca, hoje te estabeleço sobre povos e reis para arrancar e arrasar… edificar e plantar” (Jr 1, 10).

A Palavra, dirigida aos homens, encarna-se na vida do profeta e o assume a partir de dentro.

Ezequiel, por exemplo, deve comer e assimilar o rolo que contém a Palavra de Deus[3]. Ela é doce à boca, mas amarga como fel quando lhe cai no estômago. Jeremias sente a Palavra de Deus como lava ardente no seu íntimo que o inflama e o consome[4]. Isaías, por se considerar impuro, tem os lábios tocados pela brasa que vem do altar trazida numa tenaz por um anjo[5]. Amós, mesmo afirmando que não era profeta nem filho de profeta, mas cultivador de sicômoros e pastor de rebanho, é convocado por Deus a anunciar sua vontade ao rei e ao sacerdote do templo de Betel, ao mesmo tempo que denuncia suas incoerências[6]. E quando a palavra já não é mais capaz de demover as ações e convencer os corações, o profeta assume-a em sua vida e, por meio de sinais proféticos, irrompe no meio do povo a vontade de Deus, como fez o profeta Oséias ao desposar uma prostituta para dizer da infidelidade do povo de Israel[7].

Assim como no passado, o presente está pleno da palavra de Deus. Ele continua se dirigindo ao homem atual por meio de seus profetas. Por que o profeta é, antes de tudo, um vocacionado, alguém chamado de entre o povo para servir ao povo.

Todavia, há um perigo para o profeta. Quando se deixa levar pelas circunstâncias pouco felizes do tempo presente pode, facilmente, se deixar tomar pelo desânimo, pela descrença e pelo medo. Como o profeta Elias que fugia da perseguição da rainha Jezabel, o profeta pode se sentar à beira do caminho e, desprovido de forças e de ânimo, suplicar ao Senhor que lhe finde os dias: “Já basta, ó Senhor; toma agora a minha vida…” (1 Reis 19, 4). Deus, no entanto, como fez com Elias, vem ao socorro do seu servo. Alimenta-o, soergue-o de sua prostração e lhe ordena: “levanta-te e come, porque o caminho é longo” (1 Reis 19, 7).

De fato, a missão por vezes torna-se um fardo diante dos desafios que a sociedade nos apresenta. Mas o profeta verdadeiro ousa acreditar e se deixar convencer por aquela Palavra que diz: “não temas, porque estou contigo; não te assustes, porque sou o teu Deus. Eu te fortaleço, ajudo e sustento com a mão direita, a mão da justiça.” (Is 41, 10).

A certeza da companhia divina em todo e qualquer momento não toma de assalto o coração humano, antes, é uma presença silenciosa e constante: eu não estou sozinho. O mal não haverá de triunfar. Se as coisas estão difíceis, haverá uma saída. E isso não é uma ingenuidade boba, desprovida de fundamentos. É o contrário. É uma certeza garantida pela fé, pelo descanso naquela rocha mais firme do que a morte e mais plena do que qualquer outra notícia que se pretenda duradoura: Jesus Cristo, a boa-nova do Pai. “Portanto, para vocês, os que creem, esta pedra é preciosa; mas, para os que não creem, ‘a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular’, e, ‘pedra de tropeço e rocha que faz cair’”. (1Pd 2, 7-8).

Em Jesus, o Ressuscitado do Pai, o homem aprende a confiar decididamente na condução benéfica do rumo da história. Afinal, não fomos abandonados à nossa própria sorte. Não estamos sozinhos no universo. Nada do que nos acontece é fruto da des-providência de Deus, nem tampouco fruto do acaso. O que nos ocorre respinga em Deus e, quando sofremos, Ele sofre conosco; e quando nos alegramos, Ele também se alegra. O mal que nos avilta, atinge-o frontalmente. Nossa queda é a sua queda. Nosso erguimento é o seu erguimento.

Se o mal nos ocorre, se a doença nos atinge, se os problemas de toda ordem se apresentam a nós, podemos, deles, sair vitoriosos graças àquele que venceu por nós e por primeiro. Se humilhados, lançados ao chão pela calúnia e pela difamação; se lançados à fornalha ardente dos revezes humanos, se dentro da mais densa noite da alma, e mergulhados no infortúnio da morte e da dor, dentro do sepulcro, da mais profunda escuridão, brilha para nós uma luz que nos convida a sair: “… vem para fora…” (cf. Jo 11, 43).

Esperança: acreditar para além do que se vê. Pois, “a esperança não decepciona” (Rm 5, 5). Esperar ativamente no bem, na capacidade de o ser humano se reinventar e renovar suas próprias forças. Descobrir novos meios e novos caminhos. Perceber os equívocos e alterá-los satisfatoriamente. Não entregar os pontos. Não desistir facilmente, mas lutar com bravura e decisão, “pois o que a vida exige de nós é coragem” (Guimaraes Rosa).

A esperança, irmã gêmea da fé e da alegria, nos ensina a almejar outro ponto de visão, outro ângulo, outro viés e um horizonte diferente daquele que insiste em se apresentar como único. Tomados em cheio por ela, não desistimos daquele ideal que nos levou a sair, a tomar um caminho inicial, uma direção que julgávamos, lá atrás, como passível de vitória. Ela nos faz recordar dos nossos anseios mais íntimos e pueris, dos nossos porquês ainda em gestação. Ela nos relembra constantemente do nosso primeiro amor, daquela força motriz que nos impulsionou desde os primeiros instantes. Ela nos instiga a continuar, pois, “seja qual for o grau a que chegamos, importa prosseguir decididamente” (Fl 3, 16).

Um homem de cuja boca só sai expressões de desânimo, de descrença e de falta de entusiasmo, não pode ser considerado como da parte de Deus. No mínimo, não é um bom profeta. É um catalisador de males e de desesperos. Não serve para os tempos atuais. Não inspira bons augúrios, nem tampouco move o outro na direção do bem e na tentativa de transmutar o estado em que se encontra. Analisar a situação é importante e necessário. Mas isso, por si só, não basta. É preciso ir além. É preciso buscar outras portas e janelas. Às vezes, é preciso criá-las, descobri-las. É preciso forjá-las destruindo barreiras, quebrando paredes e arrebentando empecilhos.

“Não apagar a chama que ainda fumega…”. Enquanto há vida, tem jeito. Enquanto estivermos inseridos na realidade é possível mudá-la, transformá-la. O mal está em quando já não consideramos mais o tempo presente, e queremos fugir ou simplesmente mergulhar nele como quem desiste de nadar à superfície e se deixa levar para o fundo do mar, ao encontro da morte na escuridão das profundezas.

“Não quebrar a cana rachada…”. é próprio de quem tolera os remendos temporários até que se possa consertá-lo de todo, ou substitui-lo pelo totalmente novo. Não se pode continuar se se não acredita na mudança, na transformação, na reinvenção. Alguém que se deixa tomar pelo tédio, pela desconfiança e pelo demérito do trabalho alheio torna-se uma pedra de tropeço, uma fonte de negatividade. Não pode ser um bom profeta quem pensa e age assim.

O homem de fé é chamado a ser, isso sim, um homem de “raízes esperançais”. Como quem está plantado em solo fértil, e, ainda assim, amarga o dissabor do tempo e da estação estéreis. Mas acredita que o inverno não é só preciso, mas também passageiro e pedagógico. Desfolhado de todo, guarda uma reserva em si, e, no tempo oportuno, floresce. E, como as estações, a vida é feita de etapas e de estágios, diversos e opostos. É alguém que entendeu que, adaptar-se é uma outra forma de permanecer. Aliás, a permanência é constantemente alterada; muda-se para continuar a mesma.

Estamos sedentos de utopia e carentes de “profetas”. Mas não de qualquer profeta, muito menos de “falsos profetas”, ou, pior ainda, de “abutres da morte”. Não os queremos. Necessitamos, sim, de bons e altaneiros profetas que nos façam acreditar de novo, esperar o novo e expectar por novidades impensáveis, a almejar outras visões, mais claras e felizes. Aspiramos pelo dia em que nos deem novos ideais, realmente incríveis e espetaculares. Não nos encantam o óbvio e o trivial. Necessário nos é o inaudito. Na antessala do possível é preciso esperar o impossível e desejar o inalcançável. Eis o que queremos.

“Profeta da esperança”. Para este, o céu é o limite. Fincados no chão da realidade celeste, nossa copa produzirá os melhores frutos, suspensos no ar ao alcance das mãos. Como não profetizá-lo?

__________________

Por, Pe. Claudemar Silva

[1] Por profecia entende-se a leitura da realidade e, a partir dela, o profeta fazia um prognóstico provável.

[2] SHOKEL, L. Alonso. PROFETAS. Volume I e II. São Paulo, Paulus, 2011.

[3] Cf. Ez 3, 1ss.

[4] Cf. Jr 20, 2ss.

[5] Cf. Is 6, 1ss.

[6] Cf. Am 7, 14.

[7] Cf. Os 4, 1ss.

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