Era quase fim de inverno. Início do segundo semestre da Faculdade no segundo ano do meu curso de Teologia. O professor de pneumatologia [estudo do Espírito Santo] entrou na sala de aula e cravou-nos uma pergunta desconcertante: “quando você experimentou pela última vez a ação do Espírito Santo?”.
Aquela questão, posta assim tão certeira, à queima-roupa, causou em mim um silêncio perturbador. Sinceramente, eu não sabia o que dizer. Eu não tinha ideia de por onde começar. A verdade é que eu não me lembrava de um dia realmente significativo nem de algo grandioso para ser dito como ação do Espírito Santo.
Daquele dia em diante eu passei a ficar mais atento às ações do Espírito. E para minha surpresa, eu o tenho visto nos mais ínfimos instantes da minha vida. Eu o vejo agindo agora, por exemplo, quando me propus a escrever este texto e essa experiência me veio de novo ao coração. Quem a pôs aí? Sim, foi Ele. Agora não mais no monte Horeb ou quiçá no Tabor. Não. O “monte” no qual o Senhor deseja escrever a sua vontade, revelar-se, é o meu coração.
De fato, não são poucos aqueles que têm o Espírito Santo como alguém distante e, apesar de nomeá-lo, não o sentem assim, tão próximo. Por que nos falta tanta convicção a respeito de sua ação em nós e no mundo? Por que somos ainda tão tíbios em nossa conduta e em nossa resposta ao chamado do Senhor da Vida? E pensar que Ele nos foi dado em profusão no dia em que fomos chamados à vida da trindade: “eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. A partir daquele dia, eu me tornei sede do Deus Espírito Santo que não veio só. Sua santidade conformou-me às feições do Filho em quem fui adotado pelo Pai.
“Quando você experimentou pela última vez a ação do Espírito Santo?”. Aquela pergunta, eu a faço de novo a mim. Santo Agostinho dizia que o Espírito Santo, por que mora dentro de nós, é “mais íntimo de mim do que eu mesmo”. Esta proximidade, por vezes, impede-nos de vê-lo nitidamente. Há como que um ponto cego entre mim e Ele. Mas Ele está lá, presente e agindo em mim e através de mim.
O Espírito Santo é a pessoa mais presente na teologia bíblica. Ele esteve antes de tudo, na criação de tudo e depois de tudo. Permanece até hoje e estará até o fim. O livro do Gênesis afirma que “no princípio […] a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas” (Gn 1, 2-3). Ele é referido como o sopro, o hálito de Deus. Ainda no poema da criação, quando se afirma por 10 vezes: “Deus disse…”, percebemos que nesse ato do falar de Deus – o som necessita de ar (oxigênio) -, ali está o Seu Espírito. E se o Espírito é o “ar” que sai da “boca” de Deus, o fonema pronunciado através do “aparelho fonador divino” é o Verbo, a Palavra Eterna do Pai. Ambos procedem dEle. E é graças ao “ar” de Deus, o Seu Espírito, que o Filho pôde encarnar-se no seio de Maria, sua mãe.
Desse modo, habitando o coração do homem, o Dom de Deus cria ponte direta entre o humano e o divino. E o faz num processo novo de comunicação: reza em nós e conosco, pois, “não sabemos orar como convém” (Rm 8,26). Por isso, “Ele vem em socorro à nossa fragilidade” (idem). O Espírito Santo é como os meandros da água de um rio que encontra labirintos existenciais no coração do ser humano e ali pode escoar levando-o a uma experiência concreta de Deus. Por isso, o Santificador não é propriedade nossa. Ele é livre. E de tão livre é subversivo: “Ele sopra onde quer” (Jo 3,8), como quer e se quiser. Não se deixa engaiolar. Nisso, a metáfora é perfeita. Como “pomba”, o Espírito de Deus dirige-se a lugares e ambientes que não ousaríamos chegar. E não o faríamos por inúmeros motivos, e o maior deles, talvez, seja o nosso preconceito.
Somos ainda “templos” tímidos (I Cor 6, 19). Porém, “Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de desassombro e de intrepidez” (2 Tm 1,7), advertiu-nos o apóstolo dos gentios. Paulo foi homem cheio dessa fortaleza, desse amor e dessa coragem, assim como foram os grandes homens e mulheres da bíblia. E o que significa ser cheio do Espírito Santo?
Ora, ser cheio do Espírito Santo significa ser cheio de vida, de esperança, de fé, apesar das realidades de morte e de violência às quais somos expostos todos os dias e, não obstante, também aquelas que trazemos dentro de nós. A fé, porém, afirma-nos: “justamente por que espero na ressurreição dos mortos e na vida do mundo vindouro, eu já tenho aqui e agora que resistir aos poderes da morte e da destruição, e amar esta vida aqui de tal maneira que com todas as forças possa libertá-la da exploração, da opressão e da alienação. E vice-versa[1]”. Ter o Espírito Santo nos faz crer inexoravelmente na ressurreição. E crer na ressurreição não é fácil nem simples, ainda mais por que somos alimentados diariamente por uma cultura que fez aliança com o que há de mais podre e já em estado de decomposição.
Como no tempo do profeta Elias, também hoje há “Acab e Jezrael” que, para conseguirem o que pleiteiam, mentem, tramam e matam (cf. 2 Rs 21). Os dias atuais não diferem dos tempos monárquicos de um Israel distante; ainda hoje somos solapados de todos os lados: política, cultural e religiosamente. Mas, se não há espaços para os adentrarmos com o azeite novo e a água límpida do Espírito de Deus, nem tampouco com a brasa do Seu fogo, como outrora incandescente foi posta sobre os lábios de Isaías (Is 6, 1ss), Ele provoca em nós aquela resiliência que não nos deixa desistir frente às batalhas, mas, ao contrário, levanta-nos ainda mais fortes e experimentados na dor e na luta por “céus novos e uma terra nova” (Ap 21, 4).
O Espírito Santo, Sabedoria do Pai e do Filho, é companhia constante do homem e da mulher de boa vontade. Não apenas dos cristãos, repito. Ele não é propriedade nossa. Ele motiva os homens de ontem e de hoje, e os motivará sempre onde quer que estejam. Ele inspira nos corações os melhores sentimentos de paz, de amor e de fraternidade, mas não só; interpela-nos àquela paz inquieta que nos faz gritar a plenos pulmões pelos nossos direitos e reivindicar nossa dignidade usurpada. É também Ele que inspira nos artistas o melhor da sua arte, nos músicos o melhor da sua canção e nos poetas o melhor das suas poesias. Com Sua ciência, contribui com descobertas novas e significativas para a humanidade. É dele a façanha de descobrir sempre o novo, dar a um o dom da peculiaridade e a outro o da genialidade. Homens e mulheres que talvez jamais tenham ouvido falar do Cristo, mas que foram interiormente inspirados pelo sopro de um Criador que também os chamou à vida. Afinal, vida é o dom primordial dEle.
O Espírito do Senhor, às vezes, causa certo barulho. Basta recordarmo-nos de Pentecostes. Estando todas as gentes reunidas em Jerusalém para a festa judaica das Colheitas ou Semanas, eis que surge um vento impetuoso e desestabilizador; descortina o medo e desobstrui os canais de comunicação. Pedro, e os mais próximos do mestre, recebem-no com tamanha força que, rompidas as portas e janelas, fala a todos os presentes, anunciando-lhes o “mundo novo”: “[…], pois para vós é a promessa, assim como para vossos filhos e para todos aqueles que estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2, 39). O primeiro dos apóstolos falava-lhes do dom do Espírito Santo e, encorajado por Ele, fez o seu mais eloquente discurso. Não havia receio nas palavras de Pedro e, se seus lábios tremiam, era por que as palavras lhe queimavam, antes, o coração: “a este Jesus [que vós crucificastes], Deus o ressuscitou, e disto nós todos somos testemunhas” (At 2, 32).
O Espírito Santo nos faz testemunhar Jesus. Testemunhá-lo perante o mundo que é contrário ao Seu projeto. E em Jesus está a síntese perfeita da ação desse Espírito. Esse Espírito foi companhia constante em toda a vida daquele homem de Nazaré. Graças à Sua ação, o Verbo se encarnou no seio de uma virgem. E por que unidos, a palavra de Jesus era uma palavra poderosa, isto é, cumpria o que dizia [performática]. Dos lábios de Jesus, de Suas mãos e do Seu relacionamento com as pessoas, e em Sua relação filial com o Pai, o Espírito Santo tinha sempre a liberdade de atuar. Ele esteve antes, durante e continuou após a volta de Cristo à direita de Deus. Foi por meio dessa ação divina que Jesus se entregou sem reservas ao anúncio do Reinado de Deus e a Ele se deu inteiramente. Numa palavra, o Espírito Santo foi o receptáculo da vida de Jesus. Ele a fecundou, plasmou e conduziu. O Espírito Santo foi quem, paulatinamente, propiciou que Jesus fosse se assenhoreando de Sua missão e de Sua vocação. Desde o deserto, no confronto com o inimigo de Deus, até a cruz, lugar da entrega por excelência, foi o Espírito quem contribuiu para que Jesus cumprisse com eficácia e obediência a vontade do Pai. E quando terminada a sua missão no mundo, o Espírito foi o último suspiro do Filho, ajudando-o a morrer no Pai: “Pai, em tuas mãos eu entrego o meu Espírito” (Lc 23, 46).
Depois, na ressurreição, por meio do Espírito, o Pai arranca o Filho das garras do poder da morte, dos ditames e do império que ela governava e O traz à vida plena. E, por que de junto do Pai, o Filho envia aos seus seguidores a plenitude do Seu Espírito. O Espírito do Pai é também o do Filho.
Desde então, os que se dizem cristãos não deveriam mais duvidar desta presença, às vezes silenciosa, em outras um tanto “barulhenta”, mas sempre atuante no mundo. Num mundo que é obra da ação do Espírito de Deus. Que Ele ama e admirou-se porque era bom. Ambiente onde se canta, se dança e se ama, mas também onde se cala, se reprime, se odeia e se mata. É neste mundo, e não em outro, que o Espírito anseia por corações em que Ele possa agir neles e através deles. Este mundo não é, e jamais será, entregue aos poderes do anti-espírito. Este mundo sempre pertenceu ao Espírito de Deus. E continuamente sobre ele, sobre a criação inteira e, nela, sobre os humanos, Deus tem derramado o Seu Espírito. Este mundo, obra do hálito criador de Deus, pronunciado com amor e com desejo de gestá-lo, já foi consagrado a Ele desde sempre.
Por vezes, ouvimos falar de pedidos por consagração do mundo ao Espírito Santo. É preciso que se diga com honestidade e coragem: o mundo já o foi de uma vez por todas na cruz. E não só, mas ali de modo plenificado. Não há melhor, maior e mais santo altar do que este: a cruz do Senhor. De lá, antes de expirar, Jesus entregou o Seu Espírito (cf. Jo 19, 30). E o entregou para quem? Para nós, para este mundo. E o fez para quê? Para que nós, eu e você, e toda gente, e em todo lugar, pudéssemos ter hoje, como amanhã, e depois de amanhã, e sempre, a nossa “experiência com o Espírito Santo de Deus”.
Por isso, eu lhe devolvo a pergunta: quando foi a última vez que você experimentou a ação do Espírito Santo?”
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[1] MOLTMANN, Junger. O ESPÍRITO DA VIDA – uma pneumatologia integral – 2ed. Petrópolis, Editora Vozes, 2010, p. 113.
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