Não se tornaram nossas penitências, apenas rigores externos? Orgulhamo-nos de não comer carne durante quarenta dias, pois assim fizemos durante toda uma vida de tradição quaresmal… De algum modo privamo-nos daquilo que achamos importante para testar nosso autocontrole; ou ainda para unir o útil ao agradável, como fazer uma dieta, por exemplo, cortando o refrigerante. E como a quaresma, nossas penitências e jejuns duram apenas quarenta dias; um breve instante, talvez incapaz de criar em nós um hábito profundo. Indiscutível é certamente o quanto se mede nesse tempo a temperança, o autocontrole, mas isso ainda não será tudo.
E é para outro sentido que nos aponta a liturgia de hoje. De fato, para a penitência; para a justiça, o jejum e a oração, mas não para práticas marcadas pela exterioridade. Será preciso dar mais um passo, pois não agrada a Deus que nossos lábios o proclamem, enquanto nosso coração estiver distante dele (Mt 15, 8; Is 29, 13). Não lhe agrada tampouco que joguemos cinza sobre nossas cabeças, ou que rasguemos nossas vestes, se nosso coração não se abrir totalmente (Is 58, 5s). Ou ainda: não bastarão as esmolas de nossas mãos, se elas não nascerem de nossa verdadeira atenção aos outros (Am 4, 6).
Não é disso que nos fala o profeta Joel: voltar-se para Deus, converter-se, de coração, não em penitências puramente externas? Rasgar o coração! Mesmo chorar, pois não são as lágrimas, preces mais autênticas do que muitos palavreados vazios? Ou como reza o salmista: “criai em mim um coração que seja puro, dai-me um espírito decidido”. Não é o que devíamos procurar; não seria essa a melhor penitência nesse tempo favorável?
Pois, parece ser esse o caminho, para que as práticas da oração, do jejum e da caridade tenham sentido; não nascerem de nenhuma pressão exterior, ou sequer de alguma imposição; nem ainda de nenhuma prescrição religiosa, mas do coração e, de dentro, transbordar… Não para que ninguém nos veja, ou para que recebamos algum aplauso, mas no segredo, onde se mede a consistência de nossos atos. Sim, por que é possível fazer tudo, mas sem centralidade nas próprias convicções; porque é possível que sejamos realmente coerentes nas atitudes enquanto estamos distantes do nosso próprio coração e sua verdade inequívoca. Isso já será muito, mas ainda não o suficiente.
Não será isso o que Deus quer de nós nessa quaresma: uma verdadeira conversão? E por isso, talvez o evangelho não nos canse de alertar:
- Que nossa justiça não seja diante dos homens. Que uma mão não saiba o que a outra fez, para que o sentido de praticar a justiça esteja só em praticá-la e não em ser visto.
- Que ao rezar, não se abra a nossa boca num palavreado frenético e sem cessão. Num barulho ensurdecedor, num ordenar que Deus cumpra os nossos desejos, mas que a oração seja na solidão, no escondimento, onde podemos despir todas as máscaras, inclusive as das palavras.
- Que ao jejuarmos, não nos cubramos de tristeza, para parecermos mais santos, ou mais piedosos, pois basta-nos que Deus conheça nosso interior.
Portanto, o que nos aguarda nesse tempo, mas também em todos os tempos de nossa jornada cristã, senão deixarmo-nos reconciliar com Deus, voltarmos ao seu convívio, viver não de aparências ou hipocrisias, mas colocar nossa convicção unicamente Nele, o único capaz de ver o nosso último segredo?
Aproveitemos, pois, esse tempo favorável. Em humildade, sim, como nos lembram as cinzas de hoje, mas também com alegria, pois é assim que o Pai acolherá cada um que, honestamente, voltar-se para Ele.
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Por, Fr. João Júnior e Pe. Eduardo César
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