A Igreja no Brasil e no Mundo

Quinze anos sem Dom Hélder Câmara

Por Gerolamo Fazzini*

Morria no dia 27 de agosto, há 15 anos, Dom Helder Câmara, um dos bispos latino-americanos mais amados, graças à sua paixão por uma Igreja pobre e dos pobres, à sua atenção pelas pessoas e à sua fé encarnada. O retrato de um pastor que pode ser certamente considerado um precursor do papa Francisco.Confira também: Inicia processo de canonização de Dom Luciano Mendes de Almeida SJ.

“O bispo vermelho Câmara na via da beatificação”, clamava Il Messaggero de 29 de maio deste ano. Um título que exalta como uma parte da opinião pública acolheu a notícia da iminente abertura do processo canônico que poderia conduzir aos altares dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda-Recife. Entre os protagonistas da história recente (não só eclesial) da América Latina, o próprio Câmara, por toda a sua vida, precisou fazer as contas com aquela pesada etiqueta: “Quando dou de comer a um pobre, me chamam Sant – é uma de suas frases passadas à história – mas, quando pergunto por que os pobres não têm comida, então me chamam comunista”.

Curioso: também o papa Francisco, respondendo às perguntas de um grupo de jovens belgas, há poucos meses havia esclarecido: “Escutei que uma pessoa disse: com todo este falar dos pobres, este papa é um comunista! Não, esta é uma bandeira do Evangelho, a pobreza sem ideologia; os pobres estão no centro do Evangelho de Jesus”.

Eis: se há um motivo pelo qual valha a pena hoje, a 15 exatos anos da morte, reevocar a figura de dom Helder – nascido em 1909 e falecido aos 27 de agosto de 1999 -, é sua paixão pelos pobres, o seu extraordinário empenho para tornar a Igreja mais fiel àquela de Jesus: “Uma Igreja pobre para os pobres”. Nisto se pode afirmar, sem temor de desmentidos, que Câmara antecipou o papa Bergoglio.

O pequeno Bispo

Recebemos repetidas confirmações em Recife.

A Igreja das Fronteiras, junto à qual ficava a residência de Câmara, é ainda hoje o coração pulsante de sua memória. Na praça fronteiriça uma estatuado “bispinho” (como era apelidado), te acolhe de braços abertos. Ao lado fica a sede do Instituto dom Helder Câmara. Aqui encontramos um dos membros, uma anciã, mas lúcida senhora, Bete Barbosa, que trata das publicações de Câmara: “Em muitos comportamentos e palavras do papa Francisco – diz – encontramos acentos semelhantes àqueles de dom Helder. A começar pela atenção com as pessoas, por suas necessidades”.

Faz-lhe eco Luis Tenderini, de 70 anos, italiano de origem, mas no Brasil há mais de 40 anos. Como longo braço direito de Câmara na diocese e fundador de Emaús Recife, por encorajamento do próprio dom Helder, se faz de guia precioso e conta: “Desde o primeiro encontro pessoal com ele, em julho de 1979, quando me convidou a colaborar na atividade pastoral, recordarei sempre o gesto final: terminado o colóquio, me acompanhou ao portão de saída, esperando que eu dobrasse a esquina antes de reentrar. Mais tarde descobri que fazia a mesma coisa com todos que o visitassem”.

Outro traço que associa decididamente o atual papa e o “bispo vermelho” é o estilo de sobriedade extrema e a distância sideral daquela mundanidade que Bergoglio não cessa de indicar como um dos males da Igreja atual. Hoje, impressiona a decisão de Francisco de viver num modesto alojamento em Santa Marta, renunciando ao tradicional apartamento pontifício. Mas, dom Câmara havia feito o mesmo, anos antes, decidindo morar em dois modestos locais adjacentes à Igreja das Fronteiras.

Também a tumba de Câmara fala de essencialidade: uma simples laje de mármore, sobre a qual estão incisos somente o nome e as datas de nascimento e morte, com uma pomba estilizada. Está colocada na catedral de Olinda, antiga cidade colonial a poucos quilômetros de Recife. Daquela igreja, hoje meta de peregrinos e turistas, se goza de uma vista espetacular sobre a cidade situada abaixo e sobre a inteira baía.

Mais ainda. O papa Bergoglio fala dos pobres como da “carne de Cristo”. Câmara, por toda a sua vida, manifestou uma preocupação pelos últimos que, antes ainda de assumir os tons da denúncia social, se configurava como atenção às pessoas em gestos simples.

A propósito, eis um precioso testemunho de Marcelo Barros, abade beneditino e teólogo da libertação, colaborador de dom Hélder por 12 anos: “Em cada irmão e irmã que encontrava ele via a presença divina – escreveu há tempo em Nigrizia -. Uma vez por semana nos reuníamos em sua casa. Enquanto falávamos, muitas pessoas batia à porta. Ele mesmo se levantava e as recebia. Às vezes demorava em escutar. Dizia: “Procuro recebê-los pessoalmente, porque não quero perder o privilégio de acolher o próprio Senhor”.”

Protagonista do Concílio

É interessante observar como, da mesma forma como Oscar Romero, outro gigante da Igreja latino-americana, também Dom Helder Câmara tenha percorrido um caminho pessoal de “conversão”, antes de tomar as posições corajosas que conhecemos. Nascido numa família numerosa, crescera num ambiente eclesial antes conservador. Ordenado sacerdote em 1931, se converte aos pobres quando, em 1952, se torna auxiliar do cardeal do Rio de Janeiro: é naquele período que o jovem e dinâmico bispo conquista na área o epíteto de “bispo das favelas”.

O carisma de dom Helder se dilata rapidamente fora dos limites da cidade. Em 1952 ele está entre os promotores da Conferência episcopal brasileira, da qual se torna secretário por 12 anos. Três anos depois, lança no Rio a convocação da primeira Conferência dos bispos latino-americanos, da qual nascerá o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano).

Em 1964 – ano do golpe que instaura o regime militar no Brasil – Câmara é nomeado arcebispo de Recife, capital de Pernambuco, no Nordeste, a região mais pobre do País. No dia do ingresso oficial, o novo arcebispo não quer ser acolhido dentro da catedral, mas na praça, no meio do povo. Nos anos subseqüentes o empenho de dom Hélder a serviço dos mais débeis continuará sem descanso, com tomadas de posição corajosas, que o tornarão famoso em todo o mundo. Uma frase retoma eficazmente o sentido profundamente evangélico de suas batalhas: “A revolução social da qual o mundo necessita não é um golpe de Estado, não é uma guerra. É uma transformação profunda e radical que supõe Graça divina”.

Embora sem jamais tomar a palavra durante as sessões de trabalho, foi um dos protagonistas do Concílio Vaticano II, entre os inspiradores do famoso “Pacto das catacumbas”: para entender o papel crucial basta ler suas circulares coletadas em Roma, duas da manhã (São Paulo 2011). Em 1970 o Sunday”Times chegou a definir dom Hélder “o homem mais influente da América Latina após Fidel Castro”.

O paradoxo é que o interessado não havia projetado uma “carreira” de profeta. Antes, na idade de 34 anos, num momento de desconforto, havia escrito: “Atravessarei a vida sem deixar nenhum sinal incisivo. Olharei de longe são Francisco Xavier, sem poder imitá-lo. Ainda de mais longe olharei para são Francisco de Assis. No meu funeral qualquer um dirá que não produzi tudo aquilo que poderia ter produzido”.

Hoje sabemos bem que não é assim: Câmara, de fato, é enumerado entre aqueles que imprimiram uma virada decisiva à Igreja do nosso tempo. Bastem estas últimas palavras para mostrar sua atualidade: “Se Marx tivesse visto em torno de si uma Igreja encarnada, continuadora da encarnação de Cristo; se tivesse vivido com cristãos que amavam, de modo real e de fato, os homens como expressão por excelência do amor de Deus, se tivesse vivido nos dias do Vaticano II, que reassumiu tudo o que de melhor diz e ensina a teologia sobre as realidades terrestres, Marx não teria apresentado a religião como o ópio dos povos e a Igreja como alienada e alienante”.

Os prêmios e a rede

A canônica de Dom Helder Câmara tornou-se hoje um museu. Mais ainda do que a Catedral de Olinda, onde se encontra a tumba, é ali que em cada domingo uma pequena multidão se reúne para ver o pequeno estúdio do bispinho, com a biblioteca (onde ainda se destacam volumes de Guitton, De Lubac, M. L. King, Frère Schutz, Garaudy) e o quarto, onde ainda está presa a coloridíssima rede que ele usava nos últimos tempos para dormir.

No andar superior foi armada há pouco tempo uma exposição permanente de objetos que contam a vida intensa deste personagem, entre as vozes mais autorizadas do mundo na denúncia das injustiças e do subdesenvolvimento. Atestam-no os numerosíssimos reconhecimentos internacionais, das medalhas à cidadanias honorárias, às láureas honoris causa de variadas instituições acadêmicas de todo o mundo, conservados no pequeno museu.

Fonte: dom total

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