Misericórdia e não sacrifício (Mt 9, 9-11)
Situando o texto
O evangelho deste 10º. Domingo do Tempo Comum (Mt 9, 9-11) está situado numa seção maior do evangelho de Mateus, conhecida como as Obras do Messias (Mt 8,1-9,34). Como o evangelista pretende mostrar Jesus como Mestre de comprovada justiça, tanto em palavras quanto em obras, eis agora, depois do Sermão da Montanha (Mt 5-7), pelo qual ele revela as exigências do Reino, as obras messiânicas, pelas quais se mostram como o Reino dos céus já se realiza aqui, antecipadamente, na pessoa de Jesus. Há, para demonstrar isso, um claro paralelismo literário com que o autor quis demonstrar o messianismo em palavras e obras de Jesus: Ele percorria toda a Galileia; ensinava nas suas sinagogas, proclamava o alegre anúncio do Reino e curava as pessoas de toda doença e enfermidade (4,23) e Jesus percorria todas as cidades e vilarejos: ensinava em suas sinagogas, proclamava o alegre anúncio do Reino e curava toda doença e enfermidade (9,35). Esse paralelismo indica duas coisas: a primeira delas é que o evangelista pode ter querido mostrar a unidade entre as palavras e obras de Jesus unificando a seção do Sermão da Montanha com a seção das Obras Messiânicas. E a segunda é a clara ampliação da missão de Jesus, não só em toda a Galileia, mas em todas as cidades e vilarejos; uma missão que quer alcançar, portanto, a todos (e não só a casa de Israel).
O trecho deste domingo, é um recorte de uma unidade maior (9, 1-17), ambientada em Cafarnaum, composta por três confrontações de Jesus, em que estão em jogo o poder de Jesus perdoar pecados (9, 1-8), o acolhimento dos pecadores (9, 9-13) e as práticas do jejum (9,14-17). Logo, o centro da discussão do evangelho do 10º domingo do tempo comum é o acolhimento dos pecadores.
Uma tradição primitiva
Provavelmente, na tradição cristã mais primitiva, o relato de Mt 9,9-11, pode ter sido três textos distintos, separados e independentes. O relato da vocação de Levi ao discipulado, seria um deles, com o objetivo claro de falar da vocação e da prontidão da resposta, tão comum nos relatos vocacionais. Logo, esse texto teria como objetivo óbvio ajudar os primeiros crentes na disposição do seguimento. Outro relato seria sobre a participação em uma mesa, em que se sentam pecadores públicos. Essa discussão seria coroada pelo dito de Jesus sobre o médico que não veio para os saudáveis, mas para os doentes. Os pecadores, então, não devem ser rejeitados, mas acolhidos. Jesus veio para curá-los e, então, são eles que se beneficiam de sua presença. O terceiro trecho independente seria o dito de Jesus: De fato eu não vim para aqueles que são justos, mas para os pecadores. Sua missão é em favor dos pecadores.
No evangelho de Marcos, esses três trechos estão reunidos. Desse modo, a Igreja de Marcos quer indicar não simplesmente o apelo ao Reino (feito aos pecadores), mas a vocação cristã da comunidade: mesmo sendo uma comunidade de pecadores, a ela foi estendida a misericórdia de Deus. Tal qual Levi, fraudulento recolhedor dos impostos, chamado por Jesus e, tal quais os pecadores acolhidos à mesa, a comunidade cristã é tratada com essa mesma misericórdia infinita. Cada um foi chamado a fazer parte da comunidade do Mestre por causa da misericórdia do Senhor.
Mateus lendo Marcos…
Mateus usa a tradição marcana que reúne esses três textos independentes, mas retoca o texto para a catequese de sua comunidade. Ao invés de Levi, fala de Mateus, presente na lista dos apóstolos. Quem Jesus chama é alguém do grupo dos apóstolos; o convite à identificação com essa personagem fica mais intensificado.
Outra alteração significativa é o acréscimo do trecho do profeta Oséias (é misericórdia que eu quero, não sacrifício) inserida antes do dito final (eu não vim para chamar os justos…). Mateus usa a passagem de Oseias associando-a ao acolhimento dos pecadores, mas com isso insere como mandato de Jesus: ide aprender o que significa a palavra do Senhor. No texto do profeta, importa mais o conhecimento de Deus (que quer misericórdia e não sacrifícios), o conhecimento de Deus é mais importante que os holocaustos. A Igreja deve aprender, portanto, que mais fundamental do que os atos cultuais, são os gestos de misericórdia. Todo o apelo de Jesus, por misericórdia aos pecadores, é cumprimento da vontade divina. É assim que ele cumpre as Escrituras.
Com isso, evidentemente, fica claro a resistência das comunidades primitivas ao acolhimento e a abertura aos pagãos, especialmente por círculos tradicionalistas e puristas. Acolher os pagãos e, sobretudo, aqueles que não eram circuncidados era dificílimo. Mateus quer catequisar sua comunidade dizendo-lhe que, diferentemente do judaísmo tradicional, os cristãos devem ser misericordiosos tal qual Jesus o foi. Isso, para um dos evangelistas mais fiéis à tradição judaica, é de uma relevância tremenda. Talvez, por isso, o evangelho leve o nome de Mateus; é como se o próprio autor desse texto pudesse atribuir ao apóstolo aquilo que todo cristão pode experimentar: que também sobre ele fora derramada a misericórdia. Como não se tornar arauto dessa mesma misericórdia, agora?
“…virá até nós como as primeiras chuvas, como as chuvas tardias que regam o solo…” (Os 6,3)
O profeta Oséias pergunta ao povo infiel, como boca de Deus: “como vou tratar-te Efraim, como vou tratar-te, Judá?” (Os 6,4). Tal pergunta retórica é usada pelo profeta para denunciar a infidelidade do povo, cujo amor é frágil, como o orvalho que cedo se desfaz. Essa tradição, que aparece na primeira leitura deste domingo, é justamente a tradição trabalhada pelo evangelista no trecho de Mateus que ouvimos também neste domingo. Ora, o amor e a misericórdia do Senhor são infindos. Onde o povo se mostra frágil e infiel, onde seu amor é orvalho que se desfaz, o amor de Deus é fiel, é como a chuva que empapa a terra. A misericórdia de Deus chove sobre o povo, as primeiras chuvas e as chuvas tardias, tão esperadas e tão necessárias para os dons da terra.
Jesus é a chuva da justiça que Deus faz chover sobre nós. A chuva da misericórdia de Deus. Em palavras e obras, Jesus irriga nossa terra seca como a justiça que é a misericórdia. Não há separação entre uma coisa e outra. Embora muitos ainda insistam em diferenciar a justiça e a misericórdia de Deus, apresentando a primeira como o que vem depois que a segunda cessa, isso é um engano. A justiça é o que nos justifica, nos reconcilia, nos põe em comunhão com Deus; portanto, é a própria misericórdia.
Neste evangelho, Jesus chama Mateus do ambiente de pecado em que ele se encontrava, sentado na coletoria de impostos. Os coletores de impostos são malvistos pelos judeus, não só porque retiram seu próprio salário dos impostos que cobram, sempre mais caros, mas porque trabalham com a moeda que traz a efígie de César, tratado como Deus, o que é considerado pecado grave de idolatria. Associam-se, além disso, à exploração romana sofrida pelo povo e, nisso, são considerados traidores. Eis que Mateus se levanta prontamente e o texto não economiza nas tintas literárias. O verbo em grego para levantar-se, utilizado aqui, é o mesmo que para ressuscitar (anástasi). Mateus é alcançado pela vida que o Mestre confere; chove sobre ele a misericórdia.
À mesa, muitos publicanos e pecadores se sentam com Jesus e com os discípulos. A mesa não é reservada para os santos e puros, mas é lugar onde todos podem se beneficiar da vida que Jesus oferece, da reconciliação que ele garante. Os religiosos da época não suportam o comportamento de Jesus, afinal, para eles, quem come com pecadores, pecador também é. A mesa, lugar da intimidade, e do companheirismo (de comer o mesmo pão) não é lugar para dividir com todo mundo, pensavam os fariseus. Além disso, as Escrituras eram bem claras ao dizer: “feliz o homem que não vai ao conselho dos ímpios, não para no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores” (Sl 1,1). Pois Jesus se assenta com os pecadores. Não é ele que sai impuro no contato com os impuros, nem pecador no contato com os pecadores. Seu Reino não é o Reino dos justos e injustos, mas dos filhos e filhas de Deus. São os pecadores, os doentes que precisam de médico, que se beneficiam de sua cura, que se alimentam dela. Também sobre eles, chove a misericórdia.
“Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia eu quero, não sacrifício”. Eis a missão dos discípulos de Jesus, da Igreja. Aprender o que significa misericórdia. As palavras do profeta Oseias ecoam aqui: não holocaustos, não sacrifícios, não é isso o que Jesus deseja. O que Jesus deseja é fazer chover sobre nós a justiça amorosa de Deus que graciosamente nos acolhe, nos perdoa e nos insere na comunhão com ele. No centro desse evangelho está, portanto, o trecho sobre sentar-se à mesa com os pecadores, porque a comunhão com Deus é a salvação que Jesus nos quer conceder. Esse é o núcleo de toda a ação da Igreja: estender a mesa da comunhão a todos, através da misericórdia. E não só a mesa da comunhão na liturgia, mas a mesa da comunhão com as obras de misericórdia.
Jesus veio para os pecadores e não para chamar os justos. O dito de Jesus tem uma retórica que pretende incidir assim: quem é justo? Alguém se considera justo? Ora, se há alguém que se considera justo, sem pecados ou fragilidades, e há, nós o sabemos, esse alguém justamente por se achar justo e perfeito não precisa de Jesus, e de ninguém mais. De tão correto não precisa sequer de amor, apenas de admiração. Os pecadores têm algo que os justos não têm: abertura à misericórdia e à graça –consciência de que necessitam delas. Os justos não precisam de Deus, pois têm a si mesmos e esse fechamento é a sua própria ruína. No fundo, não existem justos, só os que acreditam na sua própria justiça.
Para rezar, ou “quando seremos chamados amigos de pecadores”? (Pagola)
Se nos tornamos a religião da mortificação da carne, dos sacrifícios desmesurados, das práticas piedosas baseadas na autopunição, das promessas pagas com sofrimento, isso vai bem na linha oposta do que pede Jesus: misericórdia quero, não sacrifícios. A misericórdia começa pela acolhida; acolhida do amor de Deus que vem até nós por meio de Jesus. Essa misericórdia é aquilo que realiza as Escrituras, que realiza a vontade de Deus mesmo. Ela se dá através da reconciliação que, por sua vez, também começa no acolhimento (o mesmo que Deus nos fez) aos outros.
Jesus não objeta a crítica que recebeu: “amigo de pecadores”. Para ele não é bem uma crítica. Essa é sua identidade: ele acolhe os pecadores. Esse é seu diferencial: sua mesa é seu hospital; é onde os que estão doentes podem sentir-se íntimos dele e sair curados. Sua preocupação não é se os que participam sejam santos ou não (bem diferente da preocupação hoje!). Por isso, emprestando a pergunta do teólogo José Antônio Pagola, podemos perguntar: e nós, quando seremos chamados amigos de pecadores?
Muitos não se sentem no direito de experimentar o Deus da alegria e da comunhão, que chama a todos, porque o experimentam como juiz implacável, pronto para acusar-nos e condenar-nos por nossos pecados. É uma defesa: para quê procurar alguém que nos vai humilhar, por causa de nossos próprios pecados, que geralmente já nos causam dor? Para emprestar de novo as palavras de Pagola, Deus “não é o olho vigilante da consciência”. Não é nosso juiz interno, cruel e implacável. O pecado não afasta Deus de nós; muito pelo contrário, não é assim que ele age. É bem aí que ele vem ao nosso encontro com sua paz e nos convida à transformação do seu amor. À terra seca, Deus não a destrói mais com a culpa, ou o arado de uma justiça implacável: antes a rega com carinho, para que volte a dar frutos.
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