“Eu sou a Ressurreição e a Vida” (Jo 11,25)
Pe. Eduardo César R. Calil
Apresentando o texto…
Nestes dois últimos domingos da quaresma refletimos dois grandes encontros de Jesus: no terceiro domingo, Jesus se encontrou com a samaritana (Jo 4) e no domingo anterior, com o cego de nascença (Jo 9). Já sabemos que esses relatos servem amplamente à catequese batismal das comunidades cristãs, porque trazem percursos de iluminação (photismós). Já sabemos também que o evangelho de João é dividido em duas grandes seções, sendo a primeira delas, o que conhecemos como Livro dos Sinais. São sete os sinais de Jesus no Evangelho de João e todos eles apontam para a realidade mais profunda de Jesus; revelam quem ele é e têm como grande objetivo despertar a fé nele. No evangelho do domingo passado, lemos o sexto sinal de Jesus e neste domingo leremos o último sinal, conhecido como A Ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45).
O sinal da Ressurreição de Lázaro prefigura a própria Ressurreição de Jesus e tem como grande objetivo mostrar que Jesus é a ressurreição e a vida. Ele é a luz que as trevas não conseguem deter (Jo 1,5) e, mesmo quando tentarem apagá-la tirando a sua vida, ele mesmo estará acendendo a luz, fazendo sua entrega: “ninguém tira a minha vida, mas eu a dou por minha própria vontade” (Jo 10,18). Com o sinal da ressurreição de Lázaro (o sétimo sinal, o que evoca a perfeição), nós estaremos preparados para acompanhar a glorificação do Filho do Homem: sua entrega na cruz. Terá chegado, finalmente, a sua hora (Jo 12,23).
Outro elemento importante é que este evangelho está situado entre duas ameaças de morte (Jo 10,31-33 e Jo 11,46-54). Jesus é ameaçado pela religião oficial de seu tempo. Os religiosos de sua época, afinal, não são discípulos de Abraão coisa nenhuma (Jo 8,33). Como arquitetam a morte de Jesus, só podem ter por pai o próprio diabo (Jo 8,44). Como não são capazes de abrir o coração ao amor (Jo 8,42), não podem conhecer a Deus, nem vir de Deus (1Jo 4,17-21). Por isso, a religião que não é pautada no amor é mentirosa. E quando, a mesma, defende a morte e seus poderes, ainda que maquiando essa opção com sua Lei e seus discursos sagrados, não vem do Pai de Jesus. Entre duas ameaças de morte, entretanto, encontramos um relato de vida. Onde a religião quer matar, Jesus quer fazer viver.
A comunidade de Betânia
O evangelho apresenta a comunidade de Betânia (=casa da aflição) como comunidade perfeita. Marta, Maria e Lázaro são irmãos e, portanto, não há hierarquia entre eles. A comunidade sem hierarquias ficará ainda mais explícita como modelo de comunidade quando Jesus, Senhor e Mestre, lavar os pés dos discípulos (Jo 13,14).
Entretanto, essa comunidade está em um povoado próximo a Jerusalém (cerca de três quilômetros). Esse povoado é, então, muito provavelmente, influenciado pelo pensamento dominante em Jerusalém. A proximidade que preocupa não é a geográfica, mas a de opções e compreensões.
Nessa comunidade, Lázaro está doente (Jo 11,5) e as irmãs mandam logo uma mensagem a Jesus dizendo: “Senhor, aquele que amas está doente” (Jo 11,3). Isso já é muito. Mostra que Lázaro é amigo de Jesus, mas não num sentido banal e sim como alguém que é da parte de Jesus, discípulo dele. As irmãs têm confiança em Jesus por conta disso; elas também são discípulas, afinal. Bastará uma palavra a distância (Jo 4,46-53) e a doença deixará o irmão, elas sabem. Mas Jesus não o faz nem tampouco vai correndo para Betânia. O evangelho nos faz ouvir, diferentemente, uma palavra tão enigmática para nós quanto fora para os discípulos: “esta doença não é para a morte, mas para a glória de Deus, porque pela morte se manifestará a glória do Filho de Deus”. Há uma afirmação bífida aí, pois se refere tanto a Jesus quanto a Lázaro. De fato, no evangelho de João, é na cruz de Cristo que veremos a glória de Deus. Não, porque a cruz seja desejo do Pai, não porque o Pai necessite que o caminho da morte seja trilhado, mas porque fazendo esse caminho de cruz que se apresenta à sua vida como resistência das trevas, Jesus mesmo dará a sua vida, permanecendo no Pai, porque amando até o fim. Também com Lázaro algo semelhante se dará: a pedra da morte não poderá conter a vida que jamais se perde. E a glória do Filho do homem se revelará nesse sinal: a vida se manifestará. E a vida é a glória de Deus.
Na ressurreição de Lázaro, temos notícia da ressurreição de Jesus. Apesar, então, dos comentadores insistirem na diferenciação das duas ressurreições, é preciso se dar conta do quanto a ressurreição do discípulo ajuda a entrever a ressurreição do mestre. Especialmente, porque, se a ressurreição de Lázaro é entendida apenas como reanimação de um cadáver, que voltará a morrer (o que de fato se dá no texto), se perde o cerne do próprio relato: mostrar que aqueles que creem em Jesus, ainda que morram, não morrerão jamais! (Jo 11,26).
Jesus decide, então, voltar a Judeia, indo a Betânia. Eis que seus discípulos ficam terrificados, já que não faz muito tempo (narrativo, inclusive!), em que tentaram apedrejar Jesus, lá. Ele precisará acordar seu discípulo, que dorme. Essa ambiguidade é bastante interessante, pois se ele dorme, talvez não esteja tão mal, assim pensam os discípulos (Jo 11,12). Porém, Lázaro já está morto e no túmulo, há quatro dias, quando Jesus chega a Betânia. A comunidade de Betânia chora a morte do discípulo que Jesus amava e muitos vieram para consolar Marta e Maria. A morte gera desespero e medo. Quando Jesus chega, ele não entra no povoado, pois ele não participa dessa mentalidade sobre a morte; Marta e Maria, porém, irão ao encontro dele, respondendo a seu chamado (v. 20. 28. 30). Desde aí, elas são convidadas a sair de uma mentalidade que também mata.
“Senhor, se tivesses estado aqui…” (v.21)
Marta é a primeira a expressar sua reprovação pela ausência do Mestre, justo no momento de mais necessidade. Apesar do sofrimento, Marta relança a esperança e insiste: “Sei que qualquer coisa que pedires a Deus, Deus a concederá (Jo 11,22). Ela conhece os profetas Elias e Eliseu. Sabe que o primeiro ressuscitou o filho da viúva de Sarepta (1Rs 17,17-24) e Eliseu também fizera com que o filho da sunamita ressuscitasse (2Rs 4,8-37). Para ela, é mais do que esperado uma intervenção de Jesus. O que Marta ainda não sabe é que Jesus comunica uma vida que a morte não pode corromper; que a vida de Lázaro não se pode perder, porque como discípulo, sua vida persiste pela ação do Espírito. E onde há o Espírito de Deus há vida, não há morte. Marta espera uma intervenção milagrosa, mas ouve de Jesus um aparentemente vago “ressuscitará o irmão teu” (Jo 11,23). Ela pensa, então, se tratar da crença popular em que a ressurreição dos justos se dará no último dia (2Mc 7,9). Eis, pois, que Jesus dirá algo fundamental: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Isso quer dizer que, ao valer-se do próprio “nome de Deus” (Eu Sou – Ex 3,14), Jesus se proclama como experiência de ressurreição e vida presentes, não futura. A ressurreição não é uma esperança futura, pois Jesus é quem comunica a vida e ele está presente (Jo 14,6). A morte, para ele, não é mais que um sono.
A morte não pode ter alcançado Lázaro, mesmo que ele tenha morrido, pois todos os que aderem a Jesus não morrerão jamais e “ninguém os arrancará de sua mão” (Jo 10,28). Por isso, Jesus assegura: “quem crê em mim, ainda que morto, viverá!” (Jo 11,25). E: “todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá” (Jo 11,26). Notem, então, que Jesus não promete uma vida futura, pois em Jesus, na adesão a ele, a morte mesma não existe. Quem o segue já experimenta uma vida que é e será para sempre, atravessando, inclusive, a morte (Cl 3,1).
“Sim, Senhor, eu agora creio…”
Marta não sabe, mas crê. Abandona a tradição que lança a ressurreição como expectativa para o último dia; não espera de Jesus também que ele repita os profetas antigos, mas envolvida pela Vida que o Mestre comunica já, atesta: “creio que tu és o Messias, o filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo” (Jo 11,27). Ela começa a ser alcançada pela ressurreição, a se tornar livre das amarras que a morte apertava em seu coração e quer que a irmã também se beneficie desses efeitos. Vai, pois, atrás dela.
É a vez de Maria manifestar sua decepção: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido! ” (Jo 11,32). Sua dor parece amarrar apertado seu coração também. A comunidade toda parece se ter afundado na morte, apesar de crer em Jesus e se deixam, inclusive, confortar pelos inimigos da vida; os chefes religiosos que foram prestar-lhes consolo (Jo 11,31). Será preciso que Jesus aja mais veementemente.
“Onde o colocaste?” (Jo 11,34).
É o que Jesus pergunta: onde o colocaram? Ele está comovido com Lázaro ter sido posto no túmulo, seu choro mostra seu amor, não é de desespero (gr: dakryo), diferente do choro do restante da comunidade que expressa medo (gr: klaío).
Jesus está perguntando por Lázaro, porém os discípulos estão pensando que é do morto que ele está falando. Nós, leitores, achamos que se trata do mesmo, mas não é. Na verdade, a comunidade, dominada pelo desespero quanto à morte, fechou o discípulo, que não morre, num sepulcro e o amarrou com a falta de esperança. Eles estão capturados pela morte e, por isso, esquecem que Lázaro vive. (Muito parecido com o que acontecerá com a comunidade depois da morte de Jesus, ainda presa ao túmulo). Onde o colocaste é uma pergunta, portanto, com forte teor simbólico: onde colocaram o discípulo que não morre, eles, que estão dominados pelo desespero e pelo medo?
“Tirai a pedra”, pede Jesus. A comunidade precisa fazer rolar a pedra que é sinal do fim definitivo. Marta se opõe. Ela não chegou à luz da fé completamente. Por isso mesmo, o evangelho a chamará de “a irmã do morto” (Jo 11,39). Porque é irmã do morto, ela não pode ser irmã do vivo: Lázaro. Sua fé vacila e, então, Jesus lhe pergunta: “Acaso não te disse que, se acreditares, verás a glória de Deus?” (Jo 11,40). Mas Jesus não falou nada de glória, falou de uma vida indestrutível. Logo, o evangelho está associando a glória com a vida. Marta só verá isso, se crer, porque, como sabemos, a visão a que se deve chegar é a própria fé. Se crer, verás…
A comunidade, então, tira a pedra…Começa a se abrir à vida. Para tanto, porém, será preciso deixar o morto ir…
“Deixai-o ir” (v.44)
Quando a comunidade começa a compreender que está amarrada à morte, elimina a pedra, se abre à vida. E Jesus grita em alta voz: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43). Jesus chama o vivo, que foi colocado num lugar inapropriado. De fato, Lázaro está na plenitude do amor do Pai, pois escutou a voz do Filho de Deus (Jo 5,25.28), não no túmulo; a comunidade ainda precisa compreender isso.
Além disso, Jesus conhece o nome das suas ovelhas e as chama pelo nome; ele dá a vida pelas ovelhas (Jo 10,14). Isso significa que ele confere vida e os que creem nele, já participam dessa vida de comunhão entre ele e o Pai, de modo que nem a morte possa dar cabo disso (isso é vida eterna, em João).
Pois vejam, agora, que quem sai do túmulo não é Lázaro (ele não estava lá). Quem sai do túmulo é o morto. Ele vem para fora “com os pés e as mãos amarradas por bandagens” (Jo 11,44). Esse é um jeito muito curioso de sepultamento e não faz parte da tradição de Israel; os cadáveres dos judeus eram lavados e envolvidos em lençol. O morto, tal qual a esperança da comunidade, foi amarrado, atado e, toda a comunidade ficou presa a ele, esquecendo o vivente Lázaro. Pranteiam o morto, esquecem o vivo. A última ordem de Jesus faz todo sentido, então: “Desamarrai-o e deixai-o ir” (Jo 11,44). Isso é diferente do que diz a tradução que escreve: “desamarrai-o e deixai-o caminhar”. Não! O morto deve ir! Ir embora, para que venha Lázaro. Por isso Jesus não o restitui às irmãs, porque é precisamente o morto que elas precisam deixar que se vá, para que possam experimentar o Lázaro sempre vivo. As ataduras que apertam o coração delas podem, então, afrouxar e finalmente cair. O morto estava também amarrado dentro delas, elas estavam capturadas pela morte. Assim se mostra o que Jesus é: Jesus é a ressurreição e a vida que triunfa sobre a morte, dentro e fora de nós. Ele é a luz que atrai todos para si e, por isso, “muitos dos judeus que tinham ido a Maria, vendo aquilo que ele fizera, acreditaram nele” (Jo 11,45).
Para rezar
A reprovação das irmãs a Jesus fala também da nossa decepção diante da morte e seus poderes: achamos que Jesus não está conosco, ou tarda. Sua ação, porém, nos ajuda, passo a passo, a ir desamarrando as ataduras com que nos prendemos, a nós mesmos, nos túmulos da desesperança e do desalento. Podemos, para além da existência da morte, olhar a vida que pulsa e deixar o que é morto ir embora. Nosso contrato com a vida, nosso ato de relançá-la, depende de continuamente desprendermo-nos do apreço que temos pela morte e suas forças. A comunidade cristã é chamada a tirar as pedras que fecham tantos túmulos e a escutar Jesus. Se a glória de Deus é a vida (e vida doada), de que outra maneira faremos face à morte, senão estando à escuta daquele é a Ressurreição e a Vida?
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