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Senhor, salva-me de mim mesmo

O ser humano é um ser de mistérios. Todas as ciências tentam decifrá-lo. As ciências sociais dizem do seu caráter social, mas não basta. Ele é infinitamente maior. A psicologia almeja diagnosticá-lo, inserindo-o em seu contexto interior e, a partir dele, relacionando-o consigo e com o mundo à sua volta. Ainda assim é insuficiente. As ciências médicas classificam-no; esquartejam-no no afã de entendê-lo. Ínfimo, porém. As ciências políticas legalizam-no, tutoram-no e o democratizam. Medidas parcas. As ciências econômicas escravizam-no na lógica do lucro. E o homem continua peregrino errante, com seus enigmas, mistérios e descaminhos.

A teologia, por sua vez, longe de classificá-lo ou de considerá-lo algo em definitivo, anuncia-o. Os olhos dos teólogos, e talvez dos poetas que são mais teólogos do que aqueles, dão ao homem um destino, um futuro, uma teleologia: profetiza-o.

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Desse modo, a humanidade do homem torna-se a meta do ser vivo, racional, e que tem uma criatividade peculiar. Seus caminhos são inimagináveis e ele pode alcançar patamares jamais pensados. Mas nada que se lhe atribua poderá ser maior ou mais plausível do que ele mesmo. Nenhuma invenção sua, nenhum lugar exterior a que ele possa chegar será mais incrível ou melhor do que ele.

Isso porque o homem é a medida de todas as coisas. É por causa dele que tudo existe. E, não obstante, ele é um com o meio onde vive. Se deteriorado este meio, ele se perde junto. A corrupção daquilo que o rodeia é a sua própria corrupção. Ele não fica imune ao seu exterior. Ele é parte do todo. E, ainda assim, ele é a coroa de tudo. Foi por causa do homem e graças a Ele que chegamos aonde chegamos, enquanto humanidade e natureza. Somos todos natureza. Somos todos criação.

Há quem postule a causa de Deus. Defendem-na e O retiram da questão. Põe-se a protegê-lo. Deus, porém, não tem causa própria. A causa de Deus é a causa do homem. Deus fez do interesse humano o seu interesse. Ele fez do homem o seu objeto mais explícito de devotamento. Haja vista que somos criaturas em construção e nossa medida é a altura de Deus. Isso é profecia. Não estamos prontos. A criação está ainda no sétimo dia: descansamos nEle. Ele, no entanto, trabalha sempre. Continua a fazer-nos. “Senhor, completai em mim a obra começada”[1].

Nós, por outro lado, somos errantes peregrinos. Somos des-caminhos, por vezes absurdos. Seres de incógnitas indecifráveis. “O que é o homem, Senhor, para que dele tu te ocupes tanto assim?”[2], pergunta embasbacado o autor sagrado. Não por acaso. É que desde sempre o homem é uma surpresa para si mesmo, sua espécie e até mesmo para Deus. Por mais de uma vez, Deus se arrependeu de tê-lo criado. Fomos causa de amor e de decepção. O homem tornou-se a pior das feridas de amor causadas em Deus. Desvirtuou-se do caminho proposto, da rota traçada por quem O fez[3]. Um caminho de aperfeiçoamento – não de perfeição –, e se obstinou na maldade do seu coração. Apequenou-se quando lhe era proposto o agigantamento. Perdeu-se em meio à busca empreendida. E a queda deste homem, pessoal ou coletivamente, foi a queda do seu criador. Traindo-O, a criatura traiu-se a si mesma. Pecando, desprezou a altura do único Santo cuja propriedade fora dispensada aos seus[4].

Há céticos que põem em questão a existência de Deus. Um direito que lhes assiste. Todavia, mais forte e mais inquietante é outra: o homem existe? É esta sua capacidade de ser “gente” que deve ser levada em consideração. Há, de fato, entre nós, algum homem? Somos, ainda, capazes de sustentar este peso e esta leveza de ser quem [e o que] somos e nos humanizarmos todos os dias? Por que não evitamos a barbárie e o brutal em nós?

Acreditar em Deus e em sua ação não é algo irrisório, infantil ou impossível. Basta olharmos em volta. A natureza, da qual fazemos parte, no-lO revela todos os dias. Há um “repousamento” de tudo nEle. Uma espécie de descanso na simples ideia de sua existência.

Claro. “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possí­vel, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar, é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo”[5]. Se Deus não existisse, o simples pôr-do-sol seria um ultraje da natureza. A queda das cachoeiras e o destino dos rios uma loucura. Sem Deus, a poesia seria cacofônica, o brilho no olhar dos enamorados um devaneio e as canções um ensurdecimento do espírito.

Com Deus, o homem tem um futuro. Sem Deus, terminamos em nós mesmos. E não haveria pior destino do que este: concluirmo-nos em nós. É que nós não nos bastamos. Somos insuficientes para nós mesmos; equívoco e incoerência ambulantes. Tal como ensaiara Machado de Assis em seu conto “a igreja do diabo”, temos por vezes franjas de algodão em tecido de seda; ou franjas de seda em tecido de algodão. A incoerência nos habita. Não suportamos ser ou não ser. Nós somos e não somos a todo instante e ao mesmo tempo. Somos “cruz e delícia”[6], dor e alegria, sofrimento e cura, vida e morte. Somos transeuntes sem causa e estrada sobre a qual percorremos.

Há em nós, em todos nós, uma dor instalada. E há dias em que ela lateja mais forte do que o habitual. Em outros, se cala. Parece curada. Impressões. Estamos deslocados e com uma angústia existencial trazida no peito. Ficamos sem lugar, a-tópicos; sem sossego. Em cada ser humano há uma condição de inadequação: suspeita, presumida, desconfiada, identificada, olvidada ou ignorada. Mas que há, há. E os males da alma e do coração, as incongruências da mente são as mesmas; de ontem e de hoje. E é provável que serão as mesmas de amanhã. Choramos pelos mesmos “ais” que nossos antepassados e eles pelos mesmos dos da “arte rupestre”[7]. Os nossos continuadores haverão de chorar pelo que hoje nos alegramos.

“Se lhes falta o sopro, eles perecem”[8]. Eis nossa condição de dependência. O que somos nós, então? Uma alma que flutua dentro de um corpo? Um poeta[9] uma vez disse: “queres saber o que é a alma no corpo? Veja um corpo inerte num caixão. Eis o que a alma é”. A falta da alma no corpo torna-o inapto, desprovido de vida, e, por que sem vida, morto. Sem o alento por dias melhores, mais felizes e prazerosos, sem um sentido mais firme e mais radical, o homem perece. E perece não apenas quando morre, literalmente. Pois, ainda que sobre seus próprios pés, e indo de lá para cá, o homem pode já não mais ser habitado por uma ânima/ânimus, um frescor de vento que lhe dê descanso em meio às paragens do caminho. Há quem, à beira da estrada, maltrapilho e cansado, assenta-se à sombra da árvore – símbolo da vida – e pede a morte.

Deus, no entanto, aquele mesmo Deus duvidado pelos céticos e posto em cheque pelos descrentes, voa em sua direção. Anima-o, isto é, sopra-lhe de novo nas narinas o Seu sopro e ousa dizer-lhe: “levanta-te e come, pois o caminho é longo”[10]. É sempre uma ousadia esta fé que vê no moribundo da estrada um ser de possibilidades. Ele ainda é capaz de se manter de pé e de prosseguir, ainda que longo o caminho e penosa a travessia. Não há engano nem amor cortês nesta informação. Há uma verdade. O caminho não é breve e percorrê-lo não será fácil. Daí, a necessidade de se alimentar. E o alimento é o necessário, o indispensável, aquilo que ele precisa: “pão e água”. Com o básico, o homem poderá avançar por longínquos 40 dias e 40 noites – o que significa uma vida inteira -. Imagine o que ele não fará se, além do básico, lhe for oferecido algo mais – o plus -!

Portanto, no advento do homem surge a questão teológica abissal: “Cristo nos salva de quê?”.

O Christus, este adjetivo grego, o Kyrios – Senhor -, cuja messianidade semita advém da esperança de um futuro glorioso, nostálgico e definitivo, fala-nos de um homem histórico vivido há mais de 2000 no espaço e no tempo. Dele já se afirmou belezas e tragédias, verdades e mentiras. Atribuíram-lhe parentesco com Hórus do Egito, Shiva do hinduísmo e Sócrates da Grécia. Sem falar nos inúmeros mitos cuja similaridade com o Cristo de Nazaré é perfeitamente identificável.

Em sua época, Jesus de Nazaré não era o único a ser considerado o Cristo. Não foi o único na história e não será o único a coexistir na literatura, nas artes e nas culturas. Porém, se podemos ajudar o mundo a não se esquecer de um Platão, por exemplo, é necessário recordarmo-nos sempre de novo da presença daquele que um dia veio e nos revelou nossa verdadeira imagem.

Então, o que difere Este daqueles? A diferença abissal está no dado da fé e no testemunho de homens e mulheres que perduram por séculos. Por causa da fé, os cristãos atestamos que aquele Jesus, o Cristo, vivido em Nazaré e redondezas, cuja vida e missão foram catalogadas pela tradição oral em um gênero literário chamado de Evangelho – boa-nova – é para nós o Filho de Deus, o revelador de Sua face misteriosa e paternal. Sua existência, suas palavras e ações dão sentido à nossa vida. Sua esperança e sua fé em Deus e no homem alimenta a nossa caminhada atual.

E mais; o testemunho de tantos antes de nós, que deram a vida por causa deste homem e de sua palavra nos atestam que isso não pode ser qualquer coisa. Há algo de irrenunciável e inquestionável neste modo de se entregar: uma entrega consciente e decidida por amor: “”Eu o sirvo há oitenta e seis anos, e ele não me fez nenhum mal. Como poderia blasfemar o meu rei que me salvou?”[11]. Homens e mulheres que o viram, ouviram-no e transmitiram estas suas experiências a outros que, partilhando-as, fizeram-nas chegar até nós. Uma corrente ininterrupta. Acreditamos, portanto, por causa da fé e do testemunho de outros. Nós mesmos, não O vimos; não O escutamos. Mas outros antes de nós nos dão seu testemunho fidedigno.

Por isso, antes de sermos salvos de alguma coisa, somos salvos de nós mesmos. Deus nos potencializa e nos arranca da des-graça de continuarmos presos em nós, tal como Narciso, e, confiados em nossas próprias forças, lançarmo-nos sem volta no mar de nossa existência. Ele nos afogaria. Seríamos tragados pelas nossas mazelas, belezas, incoerências e criatividades. Malogrados por nossos enganos, não nos daríamos conta de nossos equívocos e seríamos crentes em uma única “verdade”: a nossa. E não há pior condição do que esta: a de nos julgarmos invencíveis, inquestionáveis e possuidores de um dom impartilhável. Nossa sanidade estaria seriamente comprometida pela crença na estabilidade de nossas potencialidades. Não veríamos mais nada nem ninguém além de nós mesmos. Seríamos fruto da semente lançada por nossas mãos na terra cultivada por nosso próprio esforço. Produziríamos assim o pior dos sabores; “imbebível”. Desprezaríamos a contribuição dos ventos que trazem cheiros e cores de outras bandas, dos pássaros que semeiam outros pólens e da generosidade do solo e da benevolência das nuvens. Ignoraríamos a ternura das noites que embalam tudo e produzem o descanso que germina e faz crescer, e olvidaríamos a gentileza do calor e da luminosidade do sol. Atravancados em nós mesmos, morreríamos insones.

Diante do homem e de seus empreendimentos, sem querer irrompê-lo a fórceps, nem tampouco impedi-lo de nascer, bradaríamos cônscios e tementes, sábios e esperançosos: Senhor, salva-me de mim mesmo. Pois sou demasiadamente forte para arrancar e destruir, plantar e construir. Sou “dinamite, nitroglicerina pura”[12]; sou homem e sou deus. Sou encontro e desventura, arroio de chegadas e canções interrompidas. Sou monstro e sou gente. Sou factível e eterno; sou vida e sou morte.

Senhor, salva-me do pior e do melhor de mim; salva-me de meu algoz mais indomável e de minha consciência mais branda e perdoadora; salva-me desta presença pueril e envelhecida. Salva-me desta sombra que me acompanha e deste paráclito que me absolve. Salva-me desta ternura aquebrantada e desta violência acusadora. Salva-me desta fragrância fétida e deste adormecimento dos sonhos.

Senhor, por misericórdia e por ternura, todos os dias, a cada manhã e cada anoitecer, salva-me de mim mesmo. Retira-me deste aprisionamento e deste castelo subterrâneo. Mostra-me outras paragens, outras paisagens, campos e mares. Alça-me para além de mim e me ajuda a ser outro; a ser “gente”. Livra-me da perfeição. Cura-me da ferida que me tornei e salva-me deste embrulhamento de tudo que oculta e revela demasiadamente a “verdade”. O excesso de luz cega-me e não me permite ver bem. Esbranquiçaram-se os meus olhos e ora vejo confusamente.

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Por, Pe. Claudemar Silva

[1] Salmo 137 (138), 3.

[2] Salmo 8, 4.

[3] “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” Gn 1, 26.

[4] “Sede santos como eu vosso Deus sou santo” Lv 20, 7.

[5] Guimaraes Rosa – na obra “Grandes Sertões Veredas”.

[6] Trecho da ópera “La Traviata” de Giuseppe Verdi.

[7] Arte encontrada nas cavernas no período pré-histórico – paleolítico e mesolítico -, do surgimento do homem até o da escrita, 4000 a.C.

[8] Sl 146, 4.

[9] Pe. Antônio Vieira.

[10] IRs 19, 1ss. Referência ao profeta Elias que fugia da perseguição da rainha Jezabel, esposa do rei Acabe.

[11] Do martírio de São Policarpo (150 d.C), em Roma, quando inquerido pelo carrasco a pensar em sua idade e renunciar a Cristo, pois o desejo do pró-cônsul à época era a de libertá-lo, não obstante o inflar da multidão reunida no Coliseu pedindo a morte do bispo cristão.

[12] Frase atribuída ao filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) ao comentar sua filosofia.

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