Em minha casa agora há um ipê amarelo. O meu pé de manga favorito ainda continua lá, cumprindo sua missão – até quando? -. Sob este teto, deparo-me com meus anjos e com os meus demônios. Não ousei expulsar esses, pois, vai que os expulsando vão-se também aqueles? Aqui sou eu e minhas circunstâncias. O contorno da casa, a disposição dos móveis e das plantas no quintal e no jardim, em sua maioria, já não são mais os mesmos. A necessidade de fechar os olhos e deixar os registros de outrora virem ao meu encontro, livremente, é imperiosa. A criança que fui ainda vive por ali, por entre os arbustos e por dentro das frestas, brincando.
Aos poucos, as lembranças da infância e da adolescência vêm à tona. Quanta plenitude! Reconheço: seria preciso uma vida inteira para desenvolver tudo que condensei em mim. Tem razão Casimiro de Abreu quando poetizou este prelúdio de “aurora da vida”. Para muitos, este tempo é definido pelas intempéries, incompreensões e pelo enfastio. Também o foi para mim. No entanto, as minúcias sensíveis das descobertas e dos revezes sofridos em nada diminuíram o êxtase e a graça do fulgor desta fase: c’est lá vie; ça comme ça!
Estando ali, eu me dou conta do inevitável: quando é que se sabe que estamos envelhecendo?
Tenho a impressão de que é quando as lembranças do passado ganham mais cor e mais intensidade do que as do momento presente. Claro que 32 anos são ainda muito insipientes para serem tidos como a síntese de uma vida. Longe de mim esta pretensão. Mas como não pesá-los quando comparados a outras vidas que, com bem menos idade do que eu, já haviam completados com maestria os seus dias? Um Castro Alves, por exemplo, que aos 24 anos já tinha escrito a sua obra magna: “espumas flutuantes”. Teresa de Jesus, outra que, também aos 24 anos, já tinha vivido de tal modo que, muito tempo depois, fora proclamada doutora da Igreja graças à sua “pequena via”. E como não mencionar Jesus de Nazaré que, aos 30 anos iniciou sua “vida pública” e, aos 33, concluída a sua missão, delegou-a aos seus discípulos?
“Trinta e dois tons de vida” diz deste exato momento que requer atenção e acomodação de tudo o que se viveu. É tempo de contemplação, portanto. Em cada ser humano há uma espécie de arcabouço: experiências, vivências, sentimentos e emoções que, longe de se dissiparem, procuram um espaço adequado nos labirintos de nossa existência. Vão chegando e nos perguntando: “para onde vou?”, “em que gaveta ou compartimento existencial eu me situo?”, “devo ir para as boas ou más lembranças?”. Aos poucos, é preciso olhá-los de perto, nomeá-los e dizer-lhes, um a um, que lugar lhes compete. Isso evita que nos afoguemos em lágrimas, lamúrias ou, pior, em remorsos desnecessários.
Um poeta alemão, M. Rilke, dizia: “estar aqui é magnífico”. Sei quase nada deste autor, mas esta sua frase sintetiza o que penso sobre a vida e a venturosa arte de viver: uma magnífica aventura! Como não agradecer pelo fato inquestionável e intrasferível de se estar aqui, de poder tocar a vida ao mesmo tempo que somos por ela transpassados? É que eu gosto de viver. E gosto, sobretudo, de pensar a vida assim: como algo que me escorre por entre os dedos, não obstante minhas fracassadas tentativas de retê-la, de mensurá-la e de tentar compreendê-la.
É que a vida, antes de qualquer definição, de ser feliz ou triste, é o único projeto pelo qual vale efetivamente todo o nosso esforço. De fato, não vim para ser feliz, para cumprir este ou aquele esquema, mas vim, tão somente, para isto: viver. E viver é algo tão maior, que não sei e não posso definir ou conceituar ou algo que se aprenda e se possa ensinar. É subversivo ao extremo. Diante da pergunta: “o que é a vida?”, talvez fosse de bom alvitre a resposta: não sei, não tenho tempo. Estou ocupado demais vivendo.
Assim, à medida que avanço no “relógio da vida” rumo ao entardecer do dia, assentado sobre o assoalho de minha história, fito cada imagem e cada movimento em ebulição diante de mim. Alguns estão lá, estáticos no presente, enquanto outros tantos, do passado, se movimentam vertiginosamente para dentro. Ei-los aqui, faiscantes e impregnados, afixados às minhas veias mentais e por dentro de minhas entranhas seculares, de históricos milenares: coisas chegadas de longe, de outras eras, de outros povos e culturas, de antepassados e de outros mundos, de animais e de plantas, pedras e mares, bisões e aborígenes, gente e bichos, depositados todos sobre minha pele ou aconchegados em meu coração, misturados ao meu sangue, alojados em meu estômago e nos meus alvéolos. Tudo, enfim, configurado à minha face. Eu os reflito, enquanto eles me marcam e me coram de emoção.
Em estado de sossego, eu os recebo. Acolhido sobre meus pés, disposto em algum canto qualquer deste lugar que fala tanto de mim, revisito pessoas, sobretudo. As lembranças, como lampejos de luzes artificiais de um enorme projetor, lançadas sobre mim, se alternam ante as cores e sons, aromas e semblantes, enquanto harmonizam passos. Nenhum deles me é estranho. Eu os conheço. Um a um se aproxima, deita sobre mim “sua verdade” e se vai. É quando sinto um aperto no peito por coisas que não sei dizer bem o que são. São semblantes de que não me recordo ao certo e de vivências que já não sei distinguir de onde vêm. De repente, eis de novo aquela estranha saudade: de coisas que poderiam ter sido, mas não foram. Por fim, tudo se mistura, e eu, absorto pelo momento, não ouso dizer nada. O instante é de silêncio e de adoração.
Mas ainda há tempo: resignado, agradeço. Quem o poderia fazer mais e melhor do que eu? Quem, honestamente, o poderia fazer por mim? Quem, até aqui, ousara caminhar por sobre meus passos ou, ao menos, assumir por um instante como suas as sandálias surradas que calcei? Não. Ninguém, além de mim, saberia dar a este tempo e a este espaço o valor e a dignidade que eu mesmo lhes reconheci. Claro que há romantismo e fortes pinceladas na cena e no cenário. Não chega a ser fauvismo. No máximo, expressionismo. É pelo ângulo da obviedade do misto que vejo: de realidade e devaneios, desejos e incoerências, de ambiguidades e lucidez. Eu sei de tudo isso. Mas sabê-los diminui o que sou e o que julgo transportar?
Cerro os olhos e contemplo: Este lugar é sagrado. Não pelas raízes profundas que adquiri e que levo comigo. Mas pela ternura de me ter acolhido e por me acolher sempre, como agora, com desinteresse e com poesia. Assim, ancorado, flexibilizei. Por isso, como árvore bem firme, tal como aquele bambuzal plantado junto à cerca visto de minha infância, deixo-me levar por ventos favoráveis e outros tantos, intempestuosos. Mesmo alçado até o solo, eu sempre volto ao meu estado de equilíbrio. Embora, não poucas vezes, com fraturas e alvejado pela força de correntezas contrárias, eu sempre volto.
Eis aqui o meu horeb, lugar de minha “sarça” sempre incandescente. De minhas noites mais densas de significados, de estrelas incontáveis, aclaradas por uma lua que me pertence e que daqui me é tão mais esplendorosa, cuja luminosidade sempre me toma de assalto e me retém consigo. Quando plenificar os meus dias e eu for conduzido aos céus, não o adentrarei, não sem antes pernoitar em “solo lunar”. Jorge é testemunha deste meu contrato. Está combinado!
De frente comigo, olhando-me nos olhos, e envolto nos dias que passam e naqueles tantos que almejo, dou graças pelo bem indubitável que se tornou minha vida. Celebrá-la é, portanto, a melhor forma, humilde e pueril, de reconhecer que, se não refletida, ela corre o sério risco de se perder, assim, imerecida.
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Por, Pe. Claudemar Silva
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